EMBEBEDAI-VOS
É preciso estar-se, sempre, bêbado. Tudo está lá, eis a única questão. Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para a terra, é preciso embebedar-vos sem tréguas.
Mas de que? De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa. Mas embebedai-vos.
E se, às vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a grama verde de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, vós vos acordadardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que passa, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão: "É hora de embebedai-vos, embebedai-vos sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude: a escolha é vossa."
(Charles Baudelaire - do livro: Pequenos poemas em prosa - trad.: Gilson Maurity)
sexta-feira, 22 de abril de 2011
terça-feira, 5 de abril de 2011
Onestaldo de Pennafort
ARTE POÉTICA
Da janela de onde olha a paisagem lá fora,
a escutar o fluir da água que canta e chora,
por sob a ponte, sempre em mesmo diapasão,
como se o rio fosse a música do chão,
o poeta sonha...
Desce a sombra nas calçadas.
Alguém passa assobiando umas notas trinadas.
O ar amortece ...A brisa é terna como um beijo
nos olhos...E, ao sabor da brisa, sem desejo,
sem ânsias e sem pressa, erra o seu pensamento,
vadiamente, como um pássaro ao relento...
Pouco a pouco, porém, a doçura da tarde
que os contornos suaviza e que as folhas encarde,
e esse esparso langor da hora crepuscular
em que tudo parece estático, a cismar,
despertam na sua alma ignota melodia.
Memória... exaltação... delícia...nostalgia...
Silêncio. A natureza arfa e se exaure, lassa.
Fechar de asas e sons e ruídos em que passa
a eterna indagação do crepúsculo... E quando
no céu amplo e disperso
nasce a primeira estrela cintilando,
nasce o primeiro verso...
Onestaldo de Pennafort
Poesia (1987)
Da janela de onde olha a paisagem lá fora,
a escutar o fluir da água que canta e chora,
por sob a ponte, sempre em mesmo diapasão,
como se o rio fosse a música do chão,
o poeta sonha...
Desce a sombra nas calçadas.
Alguém passa assobiando umas notas trinadas.
O ar amortece ...A brisa é terna como um beijo
nos olhos...E, ao sabor da brisa, sem desejo,
sem ânsias e sem pressa, erra o seu pensamento,
vadiamente, como um pássaro ao relento...
Pouco a pouco, porém, a doçura da tarde
que os contornos suaviza e que as folhas encarde,
e esse esparso langor da hora crepuscular
em que tudo parece estático, a cismar,
despertam na sua alma ignota melodia.
Memória... exaltação... delícia...nostalgia...
Silêncio. A natureza arfa e se exaure, lassa.
Fechar de asas e sons e ruídos em que passa
a eterna indagação do crepúsculo... E quando
no céu amplo e disperso
nasce a primeira estrela cintilando,
nasce o primeiro verso...
Onestaldo de Pennafort
Poesia (1987)
domingo, 3 de abril de 2011
HILDA HILST
I
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.
Hilda Hilst
In Amavisse (1992)
----------------------------------------X
Há um incêndio de angústia e de sons
Sobre os instentos. E no corpo da tarde
Se fez uma ferida. A mulher emergiu
Descompassada no de dentro da outra:
Uma mulher de mim nos incêndios do Nada.
Tinha o dorso de uns rios: quebradiço
E terroso. O peito carregado de ametistas.
Uma mulher me viu no roxo das ciladas:
Esculpindo de novo teu rosto no vazio.
Hilda Hilst
In Amavisse (1992 -------------
----------------------------------------------
II
Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível
E o que eu desejo é luz e imaterial.
Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?
Hilda Hilst
In Da Noite (1992)
------------------------------------------------------
VI
O que é a carne? O que é esse Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor dobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.
O que é o osso? Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.
Hilda Hilst
In Da Noite (1992)
-----------------------------------
III
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
Hilda Hilst
In Do Desejo (1992)
-------------------------------IX
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Hilda Hilst
In Do Desejo (1992) -----------------
V
O Nunca Mais não é verdade.
Há ilusões e assomos, há repentes
De perpetuar a Duração.
O Nunca Mais é só meia-verdade:
Como se visses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tampo não
(E antevisses
Contentamento e morte na paisagem).
O Nunca Mais é de planícies e fendas.
É de abismos e arroios.
É de perpetuidade no que pensas efêmero
E breve e pequenino
No que sentes eterno.
Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.
Hilda Hilst
In Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995)
Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.
Carrega-me contigo.
No Amanhã.
Hilda Hilst
In Amavisse (1992)
----------------------------------------X
Há um incêndio de angústia e de sons
Sobre os instentos. E no corpo da tarde
Se fez uma ferida. A mulher emergiu
Descompassada no de dentro da outra:
Uma mulher de mim nos incêndios do Nada.
Tinha o dorso de uns rios: quebradiço
E terroso. O peito carregado de ametistas.
Uma mulher me viu no roxo das ciladas:
Esculpindo de novo teu rosto no vazio.
Hilda Hilst
In Amavisse (1992 -------------
----------------------------------------------
II
Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível
E o que eu desejo é luz e imaterial.
Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?
Hilda Hilst
In Da Noite (1992)
------------------------------------------------------
VI
O que é a carne? O que é esse Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor dobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.
O que é o osso? Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.
Hilda Hilst
In Da Noite (1992)
-----------------------------------
III
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
Hilda Hilst
In Do Desejo (1992)
-------------------------------IX
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Hilda Hilst
In Do Desejo (1992) -----------------
V
O Nunca Mais não é verdade.
Há ilusões e assomos, há repentes
De perpetuar a Duração.
O Nunca Mais é só meia-verdade:
Como se visses a ave entre a folhagem
E ao mesmo tampo não
(E antevisses
Contentamento e morte na paisagem).
O Nunca Mais é de planícies e fendas.
É de abismos e arroios.
É de perpetuidade no que pensas efêmero
E breve e pequenino
No que sentes eterno.
Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.
Hilda Hilst
In Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995)
HILDA HILST
XII
Temendo desde agosto o fogo e o vento
Caminho junto às cercas, cuidadosa
Na tarde de queimadas, tarde cega.
Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.
E ali reencontro o louco:
- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?
Por que não deixas o fogo onividente
Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder
Casando o Onisciente à tua vida?
----------------------------------------------------------
XX
De grossos muros, de folhas machucadas
É que caminham as gentes pelas ruas.
De dolorido sumo e de duras frentes
É que são feitas as caras. Ai, Tempo
Entardecido de sons que não compreendo
Olhares que se fazem bofetadas, passos
Cavados, fundos, vindos de um alto poço
De um sinistro Nada. E bocas tortuosas
Sem palavras.
E o que há de ser da minha boca de inventos
Neste entandercer. E o do ouro que sai
Da garganta dos loucos, o que há de ser?
Hilda Hilst
In Amavisse (1992
Temendo desde agosto o fogo e o vento
Caminho junto às cercas, cuidadosa
Na tarde de queimadas, tarde cega.
Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.
E ali reencontro o louco:
- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?
Por que não deixas o fogo onividente
Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder
Casando o Onisciente à tua vida?
----------------------------------------------------------
XX
De grossos muros, de folhas machucadas
É que caminham as gentes pelas ruas.
De dolorido sumo e de duras frentes
É que são feitas as caras. Ai, Tempo
Entardecido de sons que não compreendo
Olhares que se fazem bofetadas, passos
Cavados, fundos, vindos de um alto poço
De um sinistro Nada. E bocas tortuosas
Sem palavras.
E o que há de ser da minha boca de inventos
Neste entandercer. E o do ouro que sai
Da garganta dos loucos, o que há de ser?
Hilda Hilst
In Amavisse (1992
quarta-feira, 30 de março de 2011
Adriana Monteiro de Barros
As borboletas não são azuis nem o céu é cinzento.
Eu, gaivota que não tenho pouso certo,
Que rasgo o ar em busca de novos céus,
Que me arremesso contra oceanos em troca de alimento,
Sublimo as verdades absolutas,
Afirmo que a liberdade é invisível,
Só a chuva tem cheiro
Todo amor é um universo de sombras e arde!
Mas nem todo amor é vida que pulsa,
Nem toda vida que pulsa é vida
Mas toda vida é curta para ser pequena
E morna.
Adriana Monteiro de Barros
Eu, gaivota que não tenho pouso certo,
Que rasgo o ar em busca de novos céus,
Que me arremesso contra oceanos em troca de alimento,
Sublimo as verdades absolutas,
Afirmo que a liberdade é invisível,
Só a chuva tem cheiro
Todo amor é um universo de sombras e arde!
Mas nem todo amor é vida que pulsa,
Nem toda vida que pulsa é vida
Mas toda vida é curta para ser pequena
E morna.
Adriana Monteiro de Barros
Ruy Espinheira Filho
O ROSTO DA CHUVA
Esse rosto na chuva
te olha.
É uma chuva longa, uma
de muitos anos e viagens
correndo por esse rosto.
Densa como sangue, chove.
No rosto, outros rostos
cintilam,
gotas esparsas.
Assim casas, cidades, nomes,
Animais,
marés do peito abismo.
Esse rosto na chuva
te reflete
com o que a vinda,
vida,
te doou e às vezes inscreveu
tão fundo que lá não desces.
Esse rosto
na chuva que circula
em tuas veias
te punge com mil irresgatáveis
e
áspero cresce
sob a pele suave do teu rosto.
Ruy Espinheira Filho
In ‘Julgado do Vento’ (1979)
Esse rosto na chuva
te olha.
É uma chuva longa, uma
de muitos anos e viagens
correndo por esse rosto.
Densa como sangue, chove.
No rosto, outros rostos
cintilam,
gotas esparsas.
Assim casas, cidades, nomes,
Animais,
marés do peito abismo.
Esse rosto na chuva
te reflete
com o que a vinda,
vida,
te doou e às vezes inscreveu
tão fundo que lá não desces.
Esse rosto
na chuva que circula
em tuas veias
te punge com mil irresgatáveis
e
áspero cresce
sob a pele suave do teu rosto.
Ruy Espinheira Filho
In ‘Julgado do Vento’ (1979)
Cecília Meireles
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama
(Cecília Meireles)
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
A que não se recusa a esse final convite,
Em máquinas de adeus, sem tentação de volta.
Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza,
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
Já de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
Dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento, em meus cílios guardadas
Vão as medidas que separam os abraços,
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
“Agora és livre, se ainda recordas.”
(Cecília Meireles)
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
A que não se recusa a esse final convite,
Em máquinas de adeus, sem tentação de volta.
Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza,
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
Já de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
Dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento, em meus cílios guardadas
Vão as medidas que separam os abraços,
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
“Agora és livre, se ainda recordas.”
Emily Dickinson
Demasiada Loucura é o Mais Divino Juízo
Demasiada Loucura é o mais divino Juízo -
Para um Olhar criterioso -
Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -
É a Maioria que
Nisto, como em Tudo, prevalece -
Consente - e és são -
Objecta - és perigoso de imediato -
E acorrentado -
Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"
Tradução de Nuno Júdice
Demasiada Loucura é o mais divino Juízo -
Para um Olhar criterioso -
Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -
É a Maioria que
Nisto, como em Tudo, prevalece -
Consente - e és são -
Objecta - és perigoso de imediato -
E acorrentado -
Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"
Tradução de Nuno Júdice
Mário de Sá Carneiro
Mário de Sá Carneiro
"O Fixador de Instantes" do livro "Céu em Fogo":
(...)
Mas tive que lutar com a realidade demasiada e o excesso das coisas aprendidas.
Residindo largo tempo no solo admirável, eu aprendera alguns locais tão pormenorizadamente que amanhã, longe deles, não os poderia sentir – de tal forma nitidamente os reveria! E não os sentindo à força de os ver, eu não saberia estremecê-los. Por isso, assim como o pintor esfuma a sua tela para a tornar mais emotiva, mais sensível, também eu precisei esfumar a minha cidade, e fui percorrê-la em bairros que desconhecia, nas minhas horas de grande vibração – horas que, com o cenário, pararam, ficaram bem presas para mim, pois durante elas eu oscilei sensações intensas e me perdi em sonhos geniais que, nas minhas obras, mais tarde realizarei.
Bem fixado o instante, igualmente o panorama se deteve, mas esse panorama é-me vago porque nunca mais lá regressei. E pertence à grande cidade, logo, amanhã, eu posso recordá-lo sentindo-o. Não, vendo-o apenas.
Eis como emprestei ao total a bruma que uma obra destas precisa para ser eterna.
Enfim! Enfim! Desfolho rosas, esparzo aromas, tilinto oiro sobre as horas belas que existo, e assim as enlaço!
Riram-se os meus amigos quando a certa rapariguinha indecisa que eu nunca tive dei um colar de safiras e beijos... E que ela me apertara os dedos numa tarde de amor, e eu precisava guardar a luz dessa tarde, a sombra daqueles olhos mordorados, a frescura dos seus dedos – todo o aroma rutilante da hora que fugia...
Gente sem alma! Gente sem alma!
Tantas coisas da minha vida que ninguém compreende, tantas, são apenas utensílios da minha arte... Assim as tristes cartas da dançarina nua.
Ai, como eu me envaideço, como deliro das minhas estátuas!, como sou rico ao percorrê-las nas galerias infindáveis!... Porque eu tenho um passado, sim, eu tenho o passado!
Fixei a hora, guardei-a, posso tornar a vê-la.
Haverá triunfo mais alto?
(...)
"O Fixador de Instantes" do livro "Céu em Fogo":
(...)
Mas tive que lutar com a realidade demasiada e o excesso das coisas aprendidas.
Residindo largo tempo no solo admirável, eu aprendera alguns locais tão pormenorizadamente que amanhã, longe deles, não os poderia sentir – de tal forma nitidamente os reveria! E não os sentindo à força de os ver, eu não saberia estremecê-los. Por isso, assim como o pintor esfuma a sua tela para a tornar mais emotiva, mais sensível, também eu precisei esfumar a minha cidade, e fui percorrê-la em bairros que desconhecia, nas minhas horas de grande vibração – horas que, com o cenário, pararam, ficaram bem presas para mim, pois durante elas eu oscilei sensações intensas e me perdi em sonhos geniais que, nas minhas obras, mais tarde realizarei.
Bem fixado o instante, igualmente o panorama se deteve, mas esse panorama é-me vago porque nunca mais lá regressei. E pertence à grande cidade, logo, amanhã, eu posso recordá-lo sentindo-o. Não, vendo-o apenas.
Eis como emprestei ao total a bruma que uma obra destas precisa para ser eterna.
Enfim! Enfim! Desfolho rosas, esparzo aromas, tilinto oiro sobre as horas belas que existo, e assim as enlaço!
Riram-se os meus amigos quando a certa rapariguinha indecisa que eu nunca tive dei um colar de safiras e beijos... E que ela me apertara os dedos numa tarde de amor, e eu precisava guardar a luz dessa tarde, a sombra daqueles olhos mordorados, a frescura dos seus dedos – todo o aroma rutilante da hora que fugia...
Gente sem alma! Gente sem alma!
Tantas coisas da minha vida que ninguém compreende, tantas, são apenas utensílios da minha arte... Assim as tristes cartas da dançarina nua.
Ai, como eu me envaideço, como deliro das minhas estátuas!, como sou rico ao percorrê-las nas galerias infindáveis!... Porque eu tenho um passado, sim, eu tenho o passado!
Fixei a hora, guardei-a, posso tornar a vê-la.
Haverá triunfo mais alto?
(...)
Mário de Sá-Carneiro
QUASE
Mário de Sá-Carneiro
Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi..
Mário de Sá-Carneiro
Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi..
terça-feira, 29 de março de 2011
JOÃO GILBERTO NOLL
A cada quarteirão ele vibrava mais. “Sem metas”, como apregoava seu professor de estética, na época em que esse terreno suscitava sérias digressões. A cada quarteirão conhecia novo ânimo. Fôlego para mil quarteirões, se aquela praia os possuísse. Vivia uma estrada solitária. “Para descansar”, repetia. Encontraria um jeito de não mais sair dali. “Fazendo o quê?”, uma voz inclusa perguntava. Ele parou. Olhou as mãos, o corpo. “Sei sim, que dessa pele tão cedo não sairei!” Parecia um hino súbito. Divertiu-se, encenou uma risada. Voltou a correr. E não foi mais visto.
NOLL, João Gilberto. Mínimos, múltiplos, comuns. São Paulo: Francis, 2003. p.262.
NOLL, João Gilberto. Mínimos, múltiplos, comuns. São Paulo: Francis, 2003. p.262.
segunda-feira, 28 de março de 2011
Francisco Miguel de Moura
TEMPO EXISTE
Existe um tempo que sequer sentimos,
existe um tempo que sequer pensou-se,
existe um tempo que o tempo não trouxe,
existe um tempo que sequer medimos.
Existe mais: um tempo em que sorrimos,
diferente do tempo em que chorou-se,
e um tempo neutro: nem amaro ou doce.
Tempos alheios, nem sequer são primos!
Existe um tempo pior do que ruim
e um tempo amado e um tempo de canção,
existe um tempo de pensar que é o fim.
Tempo é o que bate em nosso coração:
um tempo acumulado em tempo-sim,
e um tempo esvaziado em tempo-não.
Francisco Miguel de Moura
Existe um tempo que sequer sentimos,
existe um tempo que sequer pensou-se,
existe um tempo que o tempo não trouxe,
existe um tempo que sequer medimos.
Existe mais: um tempo em que sorrimos,
diferente do tempo em que chorou-se,
e um tempo neutro: nem amaro ou doce.
Tempos alheios, nem sequer são primos!
Existe um tempo pior do que ruim
e um tempo amado e um tempo de canção,
existe um tempo de pensar que é o fim.
Tempo é o que bate em nosso coração:
um tempo acumulado em tempo-sim,
e um tempo esvaziado em tempo-não.
Francisco Miguel de Moura
quinta-feira, 24 de março de 2011
Rainer Maria Rilke
DANÇARINA ESPANHOLA
Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama, inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.
Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.
A PANTERA
(No Jardin des Plantes, Paris)
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
O POETA
Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?
Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.
Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama, inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.
Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.
A PANTERA
(No Jardin des Plantes, Paris)
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
O POETA
Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?
Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.
Rainer Maria Rilke
PRIMEIRA ELEGIA
Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo
De obscuro soluço. Ah! A quem podemos
Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,
E os animais sagazes logo percebem
Que não estamos muito seguros
No mundo interpretado. Resta-nos talvez
Alguma árvore na encosta que diariamente
Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem
E a mimada fidelidade de um hábito,
Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços
Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,
Levemente decepcionante, que para o solitário coração
Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio
Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros
Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.
Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas
Esperavam que tu as percebesses. Do passado
Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou
Ao passares sob uma janela aberta,
Um violino se entregava. Tudo isso era missão.
Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre
Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse
A bem amada? (onde queres abrigá-la
Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram
E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito
Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu
Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas. Começa
Sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi
Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma
Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.
Já pensaste pois em Gaspara Stampa
O bastante para que alguma jovem,
A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo
Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar
Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,
Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos Como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
Pois parada não há em /parte alguma.
Vozes, vozes.Escuta, coração como outrora somente
os santos escutavam: até que o gigantesco apelo
levantava-os do chão; mas eles continuavam ajoelhados,
inabaláveis, sem desviarem a atenção:
eles assim escutavam. Não que tu pudesses suportar
a voz de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,
a incessante mensagem que nasce do silêncio.
Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas
De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?
Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti
Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar
A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco
O puro movimento de seus espíritos.
Certo, é estranho não habitar mais terra,
Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,
Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas
Não dar sentido do futuro humano;
O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo
Não ser mais, e até o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,
Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto
No espaço. E estar morto é penoso
E cheio de recuperações, até que lentamente se divise
Um pouco da eternidade. - Mas os vivos
Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes
Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
Arrebata através de ambos os reinos todas as idades
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.
Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,
Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno
suavemente se deixa, ao crescer.Mas nós que de tão grandes
mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes
o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,
A primeira música ousando atravessou o árido letargo,
Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente
escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou
naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?
Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu
publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos
de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o
antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.
Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo
De obscuro soluço. Ah! A quem podemos
Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,
E os animais sagazes logo percebem
Que não estamos muito seguros
No mundo interpretado. Resta-nos talvez
Alguma árvore na encosta que diariamente
Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem
E a mimada fidelidade de um hábito,
Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços
Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,
Levemente decepcionante, que para o solitário coração
Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio
Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros
Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.
Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas
Esperavam que tu as percebesses. Do passado
Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou
Ao passares sob uma janela aberta,
Um violino se entregava. Tudo isso era missão.
Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre
Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse
A bem amada? (onde queres abrigá-la
Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram
E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito
Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu
Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas. Começa
Sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi
Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma
Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.
Já pensaste pois em Gaspara Stampa
O bastante para que alguma jovem,
A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo
Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar
Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,
Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos Como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
Pois parada não há em /parte alguma.
Vozes, vozes.Escuta, coração como outrora somente
os santos escutavam: até que o gigantesco apelo
levantava-os do chão; mas eles continuavam ajoelhados,
inabaláveis, sem desviarem a atenção:
eles assim escutavam. Não que tu pudesses suportar
a voz de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,
a incessante mensagem que nasce do silêncio.
Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas
De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?
Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti
Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar
A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco
O puro movimento de seus espíritos.
Certo, é estranho não habitar mais terra,
Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,
Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas
Não dar sentido do futuro humano;
O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo
Não ser mais, e até o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,
Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto
No espaço. E estar morto é penoso
E cheio de recuperações, até que lentamente se divise
Um pouco da eternidade. - Mas os vivos
Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes
Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
Arrebata através de ambos os reinos todas as idades
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.
Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,
Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno
suavemente se deixa, ao crescer.Mas nós que de tão grandes
mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes
o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,
A primeira música ousando atravessou o árido letargo,
Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente
escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou
naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?
Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu
publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos
de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o
antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.
FRIEDRICH HOELDERLIN
Hölderlin e Capra
"Cada ponto em sua desagregação e reprodução se acha infinitamente entrelaçado com o sentimento total da desagragação e reprodução de forma que tudo se permeia, se toca e se aproxima infinitamente , tanto na dor como na alegria, na luta e na paz, no movimento e no repouso, na configuração e desconfiguração".
Hölderlin. Reflexões. Pág. 75 e 76.
"Cada ponto em sua desagregação e reprodução se acha infinitamente entrelaçado com o sentimento total da desagragação e reprodução de forma que tudo se permeia, se toca e se aproxima infinitamente , tanto na dor como na alegria, na luta e na paz, no movimento e no repouso, na configuração e desconfiguração".
Hölderlin. Reflexões. Pág. 75 e 76.
FRIEDRICH HOELDERLIN
1
PÃO E VINHO (Friedrich Hoelderlin – 1770-1843)
1
Dorme a cidade à volta; cala-se a rua iluminada
E, ornados de tochas, partem os carros rumorosos.
Fartos do dia intenso, os homens vão-se repousar em casa
E uma cabeça ajuizada pondera lucros e perdas
No conforto do seu lar; vazio de racimos, de flores,
De coisas feitas a mão, jaz tranqüilo o operoso mercado.
Mas sons de músicas soam longe, nos jardins, por onde
Talvez toque um enamorado ou lembre um solitário
A mocidade, os amigos distantes; ouvem-se as fontes
Correndo, sempre frescas, junto aos canteiros perfumosos.
Numa surda alegria, repicam sinos ao crepúsculo
E, atento ao curso das horas, um vigia as vai gritando.
Vem um sopro agitar o topo das árvores do bosque
E também, vede! Silhueta de nossa Terra, a Lua
Secretamente surge; desdobra-se a noite inspiradora,
Cheia de estrelas e muito pouco preocupada conosco.
Cintilante, surpreendente, forasteira em meio aos homens,
Ela se eleva, melancolia e pompa, sobre os montes.
2
2
Maravilhosa é a graça da Altíssima e ninguém sabe
Donde provém ela nem o que dela lhe caberá.
Eis como ela move o mundo e a alma esperançosa dos homens.
Sábio algum compreende bem o que ela prepara porque
Assim o determina o deus supremo, que muito te ama;
Por isso, em vez dela preferes o dia circunspecto.
Mas de quando em quando o olhar límpido ama também a sombra
E busca por gosto, mais do que por necessidade, o sono;
O homem fidedigno, por gosto também, perscruta a noite.
Sim, não quadra mal oferecer-lhe coroas e cânticos
Porque a noite está consagrada aos insensatos e aos mortos,
Mas ela própria mantém sempre e sempre o espírito isento.
Todavia, cumpre-lhe ainda, para que, na hora hesitante,
Possamos em meio à treva encontrar algo palpável,
Propiciar-nos o esquecimento, a sagrada embriaguez, dar-nos
A palavra transbordante que, como os enamorados,
Seja insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa
E a sagrada memória em vigília até o fim da noite.
3
Em vão calamos o coração no peito, o sentimento
Em vão o contemos, nós, mestres e aprendizes, pois quem
Iria impedi-lo, iria proibir nossa alegria?
O fogo divino também nos incita, dia e noite,
A ir adiante. Vem, pois, contemplar o aberto, buscar
Um bem que seja o nosso próprio, por distante que esteja!
Uma coisa é segura: por volta do meio-dia ou perto
Da meia-noite, existe sempre uma medida comum
Para todos, mas há para cada um bem particular.
A busca-lo vai cada um e chega até onde consegue.
Que da troça troce a alegre insensatez quando apossar-se
Repentinamente dos poetas na noite sagrada.
Vem para o Istmo, pois! Lá onde o mar aberto canta ao pé
Do Parnaso, e o brilho da neve envolve os rochedos délficos.
Lá no país do Olimpo, lá nas alturas de Citáiron,
À sombra dos pinheiros, no meio das vinhas, lá de onde
Chega o rumor de Tebas e Ismenos, no país de Cadmos;
De lá vem e para lá aponta de volta o deus vindouro.
4
Venturosa Grécia! Morada de todos os Celestes!
É verdade então o que ouvimos em nossa juventude?
Salão de festa – por chão o mar, por mesa as montanhas –
Só para tal fim construído desde tempos remotos!
Mas onde os tronos, onde os templos, onde as taças repletas
De néctar? Onde os cânticos para o deleite dos deuses?
Onde, a brilhar, os oráculos de tão longínquo acerto?
Se Delfos dorme, onde soa a voz do célere, do grande
Destino? onde irrompe, cheio de venturas sempiternas,
A trovejar por sobre as vistas inesperadamente?
Pai Éter! O grito ia de boca em boca repetido
Mil vezes, pois não suportava ninguém viver a sós;
Repartido, tal bem alegra e, trocado com estranhos,
Faz-se júbilo, acorda o embotado poder da palavra.
Pai sereno! soa e ressoa, quão longe vá, o signo
Tão antigo, exato e criador, herdado dos maiores.
Surgem assim os Celestes, numa funda comoção;
Assim, desde as trevas, desce até os homens sua luz.
5
Chegam a princípio despercebidos; contra eles se erguem
Os filhos, a quem cega, por viva demais, a ventura.
O homem os teme; mesmo um semideus mal sabe dizer
Os nomes dos que dele se aproximam com dádivas.
Mas é grande o valor que lhe infundem, enchem-lhe o coração
De alegria; ignorando de que modo usar tantos bens,
Ele cria e esbanja e até crê tornar sagrado o profano
Que toca, numa bênção, com mão insensata e clemente.
Os Celestes o toleram quanto podem, mas enfim
Se mostram como são na verdade, e os homens se habituam
À ventura, à luz, e aos rostos dos deuses visíveis, deuses
Que, há tanto tempo nomeados por todos e por cada homem,
Enchem-lhe o peito mudo de satisfação gratuita,
Primeiros, únicos a satisfazer todo desejo.
Assim é o homem: quando um bem se apresenta e um deus lhe traz
As suas dádivas, não o reconhece nem o vê.
Tem antes de sofrer para dar nome ao que lhe é mais caro;
Aí sim, as palavras lhe virão como vêm as flores.
7
Mas, amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,
Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.
Infinita é sua ação ali e aos Celestes parece
Importar pouco a nossa vida, pelo muito que de nós poupam.
Pois nem sempre os pode conter um vaso frágil e só
De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.
A vida é depois sonhar com eles. Entretanto, o erro
É útil, tal como o sonho, e a aflição e a noite dão forças
Até crescerem heróis bastantes em berços de bronze,
De forte coração como os de outrora, iguais aos Celestes.
Hão de vir, trovejantes. Porém, parece-me, por vezes,
Bem melhor dormir do que viver assim sem companheiros.
O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer?
Não sei: e para que poetas num tempo de indigência?
Mas são, dizes, como os sacerdotes do deus das vinhas
Que, pela noite sagrada, iam de país em país.
8
Quando, em tempos que nos parecem remotos, ascenderam
Ao céu todos os que tornavam a vida venturosa;
Quando o Pai apartou seu semblante do mundo dos homens
E com fundadas razões o luto começou na terra;
Quando, celestial consolo, apareceu enfim um gênio
Que tranqüilo proclamou o término do dia e foi-se –
Deixou o coro celeste atrás de si, como sinal
De que estivera entre nós e voltaria, certos dons
Para que pudéssemos gozar humanamente como antes;
Mas o maior, a alegria de espírito, era demais
Para os homens: se só aos fortes, que ainda, ainda faltam, cabe
A alegria mais alta, resta ao menos certa gratidão.
O pão é fruto da terra, porém a luz o abençoa
E do deus trovejante provém a alegria do vinho.
Por isso pensamos nos Celestes, que outrora estiveram
Na terra e para cá voltarão quando chegar o tempo.
Por isso celebram os poetas também, em canto grave,
O antigo deus do vinho, a quem louvor não soa fútil.
9
Sim! dizem com razão que ele concilia o dia e a noite,
Move os astros céu acima céu abaixo eternamente,
Alegre o tempo todo, como a folhagem sempreverde
Dos pinhais que ama tanto, e a coroa de hera que escolheu.
Pois é o que permanece, o que traz o rastro dos deuses
Desaparecidos às trevas ínferas dos sem-deuses.
Vede: o que vaticinam os vates nos velhos cânticos
Dos filhos de Deus, cumpre-se em nós: o fruto das Hespérides!
Maravilhoso e preciso é o que nos homens se cumpre;
Crê que já o provou, mas de tantas coisas que acontecem,
Umas poucas nos tocam, sombras sem coração que somos
Até reconhecermos todos pertencer ao Pai Éter.
Entrementes, portador da tocha, eis que o filho do Altíssimo,
Desce, vindo da Síria, por entre as sombras cá de baixo.
O sábio bem-aventurado o vê; um sorriso da alma
Cativa lhe assoma aos lábios e uma luz lhe aquece os olhos.
Dorme e sonha tranqüilo o Titã nos braços da Terra
E o próprio Cérbero invejoso, após beber, adormece.
tradução do José Paulo Paes
PÃO E VINHO (Friedrich Hoelderlin – 1770-1843)
1
Dorme a cidade à volta; cala-se a rua iluminada
E, ornados de tochas, partem os carros rumorosos.
Fartos do dia intenso, os homens vão-se repousar em casa
E uma cabeça ajuizada pondera lucros e perdas
No conforto do seu lar; vazio de racimos, de flores,
De coisas feitas a mão, jaz tranqüilo o operoso mercado.
Mas sons de músicas soam longe, nos jardins, por onde
Talvez toque um enamorado ou lembre um solitário
A mocidade, os amigos distantes; ouvem-se as fontes
Correndo, sempre frescas, junto aos canteiros perfumosos.
Numa surda alegria, repicam sinos ao crepúsculo
E, atento ao curso das horas, um vigia as vai gritando.
Vem um sopro agitar o topo das árvores do bosque
E também, vede! Silhueta de nossa Terra, a Lua
Secretamente surge; desdobra-se a noite inspiradora,
Cheia de estrelas e muito pouco preocupada conosco.
Cintilante, surpreendente, forasteira em meio aos homens,
Ela se eleva, melancolia e pompa, sobre os montes.
2
2
Maravilhosa é a graça da Altíssima e ninguém sabe
Donde provém ela nem o que dela lhe caberá.
Eis como ela move o mundo e a alma esperançosa dos homens.
Sábio algum compreende bem o que ela prepara porque
Assim o determina o deus supremo, que muito te ama;
Por isso, em vez dela preferes o dia circunspecto.
Mas de quando em quando o olhar límpido ama também a sombra
E busca por gosto, mais do que por necessidade, o sono;
O homem fidedigno, por gosto também, perscruta a noite.
Sim, não quadra mal oferecer-lhe coroas e cânticos
Porque a noite está consagrada aos insensatos e aos mortos,
Mas ela própria mantém sempre e sempre o espírito isento.
Todavia, cumpre-lhe ainda, para que, na hora hesitante,
Possamos em meio à treva encontrar algo palpável,
Propiciar-nos o esquecimento, a sagrada embriaguez, dar-nos
A palavra transbordante que, como os enamorados,
Seja insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa
E a sagrada memória em vigília até o fim da noite.
3
Em vão calamos o coração no peito, o sentimento
Em vão o contemos, nós, mestres e aprendizes, pois quem
Iria impedi-lo, iria proibir nossa alegria?
O fogo divino também nos incita, dia e noite,
A ir adiante. Vem, pois, contemplar o aberto, buscar
Um bem que seja o nosso próprio, por distante que esteja!
Uma coisa é segura: por volta do meio-dia ou perto
Da meia-noite, existe sempre uma medida comum
Para todos, mas há para cada um bem particular.
A busca-lo vai cada um e chega até onde consegue.
Que da troça troce a alegre insensatez quando apossar-se
Repentinamente dos poetas na noite sagrada.
Vem para o Istmo, pois! Lá onde o mar aberto canta ao pé
Do Parnaso, e o brilho da neve envolve os rochedos délficos.
Lá no país do Olimpo, lá nas alturas de Citáiron,
À sombra dos pinheiros, no meio das vinhas, lá de onde
Chega o rumor de Tebas e Ismenos, no país de Cadmos;
De lá vem e para lá aponta de volta o deus vindouro.
4
Venturosa Grécia! Morada de todos os Celestes!
É verdade então o que ouvimos em nossa juventude?
Salão de festa – por chão o mar, por mesa as montanhas –
Só para tal fim construído desde tempos remotos!
Mas onde os tronos, onde os templos, onde as taças repletas
De néctar? Onde os cânticos para o deleite dos deuses?
Onde, a brilhar, os oráculos de tão longínquo acerto?
Se Delfos dorme, onde soa a voz do célere, do grande
Destino? onde irrompe, cheio de venturas sempiternas,
A trovejar por sobre as vistas inesperadamente?
Pai Éter! O grito ia de boca em boca repetido
Mil vezes, pois não suportava ninguém viver a sós;
Repartido, tal bem alegra e, trocado com estranhos,
Faz-se júbilo, acorda o embotado poder da palavra.
Pai sereno! soa e ressoa, quão longe vá, o signo
Tão antigo, exato e criador, herdado dos maiores.
Surgem assim os Celestes, numa funda comoção;
Assim, desde as trevas, desce até os homens sua luz.
5
Chegam a princípio despercebidos; contra eles se erguem
Os filhos, a quem cega, por viva demais, a ventura.
O homem os teme; mesmo um semideus mal sabe dizer
Os nomes dos que dele se aproximam com dádivas.
Mas é grande o valor que lhe infundem, enchem-lhe o coração
De alegria; ignorando de que modo usar tantos bens,
Ele cria e esbanja e até crê tornar sagrado o profano
Que toca, numa bênção, com mão insensata e clemente.
Os Celestes o toleram quanto podem, mas enfim
Se mostram como são na verdade, e os homens se habituam
À ventura, à luz, e aos rostos dos deuses visíveis, deuses
Que, há tanto tempo nomeados por todos e por cada homem,
Enchem-lhe o peito mudo de satisfação gratuita,
Primeiros, únicos a satisfazer todo desejo.
Assim é o homem: quando um bem se apresenta e um deus lhe traz
As suas dádivas, não o reconhece nem o vê.
Tem antes de sofrer para dar nome ao que lhe é mais caro;
Aí sim, as palavras lhe virão como vêm as flores.
7
Mas, amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,
Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.
Infinita é sua ação ali e aos Celestes parece
Importar pouco a nossa vida, pelo muito que de nós poupam.
Pois nem sempre os pode conter um vaso frágil e só
De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.
A vida é depois sonhar com eles. Entretanto, o erro
É útil, tal como o sonho, e a aflição e a noite dão forças
Até crescerem heróis bastantes em berços de bronze,
De forte coração como os de outrora, iguais aos Celestes.
Hão de vir, trovejantes. Porém, parece-me, por vezes,
Bem melhor dormir do que viver assim sem companheiros.
O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer?
Não sei: e para que poetas num tempo de indigência?
Mas são, dizes, como os sacerdotes do deus das vinhas
Que, pela noite sagrada, iam de país em país.
8
Quando, em tempos que nos parecem remotos, ascenderam
Ao céu todos os que tornavam a vida venturosa;
Quando o Pai apartou seu semblante do mundo dos homens
E com fundadas razões o luto começou na terra;
Quando, celestial consolo, apareceu enfim um gênio
Que tranqüilo proclamou o término do dia e foi-se –
Deixou o coro celeste atrás de si, como sinal
De que estivera entre nós e voltaria, certos dons
Para que pudéssemos gozar humanamente como antes;
Mas o maior, a alegria de espírito, era demais
Para os homens: se só aos fortes, que ainda, ainda faltam, cabe
A alegria mais alta, resta ao menos certa gratidão.
O pão é fruto da terra, porém a luz o abençoa
E do deus trovejante provém a alegria do vinho.
Por isso pensamos nos Celestes, que outrora estiveram
Na terra e para cá voltarão quando chegar o tempo.
Por isso celebram os poetas também, em canto grave,
O antigo deus do vinho, a quem louvor não soa fútil.
9
Sim! dizem com razão que ele concilia o dia e a noite,
Move os astros céu acima céu abaixo eternamente,
Alegre o tempo todo, como a folhagem sempreverde
Dos pinhais que ama tanto, e a coroa de hera que escolheu.
Pois é o que permanece, o que traz o rastro dos deuses
Desaparecidos às trevas ínferas dos sem-deuses.
Vede: o que vaticinam os vates nos velhos cânticos
Dos filhos de Deus, cumpre-se em nós: o fruto das Hespérides!
Maravilhoso e preciso é o que nos homens se cumpre;
Crê que já o provou, mas de tantas coisas que acontecem,
Umas poucas nos tocam, sombras sem coração que somos
Até reconhecermos todos pertencer ao Pai Éter.
Entrementes, portador da tocha, eis que o filho do Altíssimo,
Desce, vindo da Síria, por entre as sombras cá de baixo.
O sábio bem-aventurado o vê; um sorriso da alma
Cativa lhe assoma aos lábios e uma luz lhe aquece os olhos.
Dorme e sonha tranqüilo o Titã nos braços da Terra
E o próprio Cérbero invejoso, após beber, adormece.
tradução do José Paulo Paes
FRIEDRICH HOELDERLIN
Sonnenuntergang
Wo bist du? trunken dämmert die Seele mir
Von aller deiner Wonne; denn eben ist's,
Dass ich gelauscht, wie, goldner Töne
Voll, der entzückende Sonnenjüngling
Sein Abendlied auf himmlischer Leier spielt';
Es tönten rings die Wälder und Hügel nach.
Doch fern ist er zu frommen Völkern,
Die ihn noch ehren, hinweggegangen.
Por do Sol (trad. Manuel Bandeira)
Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De tôdas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.
Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Êle no entanto já ia longe, levando a luz
A gentes mais devotas.
Que o honram ainda.
Wo bist du? trunken dämmert die Seele mir
Von aller deiner Wonne; denn eben ist's,
Dass ich gelauscht, wie, goldner Töne
Voll, der entzückende Sonnenjüngling
Sein Abendlied auf himmlischer Leier spielt';
Es tönten rings die Wälder und Hügel nach.
Doch fern ist er zu frommen Völkern,
Die ihn noch ehren, hinweggegangen.
Por do Sol (trad. Manuel Bandeira)
Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De tôdas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.
Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Êle no entanto já ia longe, levando a luz
A gentes mais devotas.
Que o honram ainda.
terça-feira, 22 de março de 2011
RENATO TAPADO
Matizes
pelas manhãs desperto
as fontes de uma
cor
ação
tingindo o dia de anseios
pelas tardes enfrento
o véu cigano do olhar
em ruas humanas e
claras
pelas noites guarneço
as forças do sonho
sonar
de novos matizes de
ser
RENATO TAPADO
pelas manhãs desperto
as fontes de uma
cor
ação
tingindo o dia de anseios
pelas tardes enfrento
o véu cigano do olhar
em ruas humanas e
claras
pelas noites guarneço
as forças do sonho
sonar
de novos matizes de
ser
RENATO TAPADO
Álvaro Ribeiro
[...]
Ler um livro é difícil; ler até ao ponto, ou até à ponta, em que se passa das afirmações comprovadas para as verdades ocultas. Ler é pensar, ou repensar, o que o autor escreveu. Faz-se mister, para isso, ler com o auxílio de um questionário, registar no manuscrito a distinção exacta entre as questões insolutas e os problemas resolvidos; mas como só um ou outro estudioso se dispõe a tal interrogatório, para avaliar o que conseguiu saber, prevalece a discussão superficial dos argumentos que exemplarmente emergem aqui ou além, e a crítica literária dá por julgado um livro qualquer ao fim de uma rápida e fácil leitura.
O escritor desanima ao verificar que o seu pensamento corre minorado ou adulterado nas vozes anónimas que formam a opinião pública. Nenhuma escola, nenhum partido, nenhuma seita manifestará benevolência para com o homem extravagante que pensa de modo diferente dos outros, nem quererá atraí-lo para o seu grémio. Esta verdade reflecte-se no conhecido provérbio: O saber não ocupa lugar. De aí a tendência, para negar justiça àquele que for sincero no falar e no escrever. A liberdade de pensamento é assim diariamente limitada pela crítica moral, política e religiosa, num processo que só terminará pelo nivelamento final das inteligências.
Diz-se que a história fará justiça, mas a lição da história não produz efeito de reconforto sentimental. Os mesmos erros perduram, depois de reconhecidos, e reproduzem-se por uma necessidade que a vontade humana não consegue travar. Corrigir o erro seria, para muitos estudiosos, regressar ao passado e revogar o presente; corrigir o erro seria, para outros, proceder a um desmentido; preferem todos avançar sempre para um futuro imaginado, levados talvez por inconscientes motivos de opção.
Esperam aqueles que não agem. Esperando assimilam doutrinas que os verdadeiros e os falsos profetas vão propagando de geração em geração. Transferir o messianismo é a lei mental da cultura portuguesa.
Álvaro Ribeiro
Ler um livro é difícil; ler até ao ponto, ou até à ponta, em que se passa das afirmações comprovadas para as verdades ocultas. Ler é pensar, ou repensar, o que o autor escreveu. Faz-se mister, para isso, ler com o auxílio de um questionário, registar no manuscrito a distinção exacta entre as questões insolutas e os problemas resolvidos; mas como só um ou outro estudioso se dispõe a tal interrogatório, para avaliar o que conseguiu saber, prevalece a discussão superficial dos argumentos que exemplarmente emergem aqui ou além, e a crítica literária dá por julgado um livro qualquer ao fim de uma rápida e fácil leitura.
O escritor desanima ao verificar que o seu pensamento corre minorado ou adulterado nas vozes anónimas que formam a opinião pública. Nenhuma escola, nenhum partido, nenhuma seita manifestará benevolência para com o homem extravagante que pensa de modo diferente dos outros, nem quererá atraí-lo para o seu grémio. Esta verdade reflecte-se no conhecido provérbio: O saber não ocupa lugar. De aí a tendência, para negar justiça àquele que for sincero no falar e no escrever. A liberdade de pensamento é assim diariamente limitada pela crítica moral, política e religiosa, num processo que só terminará pelo nivelamento final das inteligências.
Diz-se que a história fará justiça, mas a lição da história não produz efeito de reconforto sentimental. Os mesmos erros perduram, depois de reconhecidos, e reproduzem-se por uma necessidade que a vontade humana não consegue travar. Corrigir o erro seria, para muitos estudiosos, regressar ao passado e revogar o presente; corrigir o erro seria, para outros, proceder a um desmentido; preferem todos avançar sempre para um futuro imaginado, levados talvez por inconscientes motivos de opção.
Esperam aqueles que não agem. Esperando assimilam doutrinas que os verdadeiros e os falsos profetas vão propagando de geração em geração. Transferir o messianismo é a lei mental da cultura portuguesa.
Álvaro Ribeiro
Ferreira Gullar
Infinito Silêncio
houve
(há)
um enorme silêncio
anterior ao nascimento das estrelas
antes da luz
a matéria da matéria
de onde tudo vem incessante e onde
tudo se apaga
eternamente
esse silêncio
grita sob nossa vida
e de ponta a ponta
a atravessa
estridente
Ferreira Gullar
houve
(há)
um enorme silêncio
anterior ao nascimento das estrelas
antes da luz
a matéria da matéria
de onde tudo vem incessante e onde
tudo se apaga
eternamente
esse silêncio
grita sob nossa vida
e de ponta a ponta
a atravessa
estridente
Ferreira Gullar
Homero Frei
A solidão
(Fuga que Deus repete sempre
Dos olhos do meu caminho).
Na superfície desse mar
Com sede
Uma cigarra
Em asas
(Tão maciças...).
Eu heraldizo
O vôo!
Homero Frei
In: Lado Alado
(Fuga que Deus repete sempre
Dos olhos do meu caminho).
Na superfície desse mar
Com sede
Uma cigarra
Em asas
(Tão maciças...).
Eu heraldizo
O vôo!
Homero Frei
In: Lado Alado
Ferreira Gullar
Barulho
Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.
Ferreira Gullar
Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.
Ferreira Gullar
Margarida Vale de Gato
Condições mínimas
Esta sarça é interdita a matilhas;
há que mudar a pele para comer
o fogo. Não que eu faça render
qualquer talento, ou tenha em vasilhas
semi-intactas ilustres maravilhas:
uma lista de coisas a fazer,
solidão, pedra de isqueiro, um revólver,
e um aparelho já com pouca pilha
e que só uso eu; a nós vontade
basta – e alguma luz: pede-se intensa,
mas sem que obste o brilho à entrega cega,
aceitas? compreendes? aguentas?
no nervo negro desta densidade
penetra só sentindo que sustentas
e me conténs quando eu me desintegro.
- Margarida Vale de Gato
in Relâmpago n.º26, Fundação Luís Miguel Nava
Esta sarça é interdita a matilhas;
há que mudar a pele para comer
o fogo. Não que eu faça render
qualquer talento, ou tenha em vasilhas
semi-intactas ilustres maravilhas:
uma lista de coisas a fazer,
solidão, pedra de isqueiro, um revólver,
e um aparelho já com pouca pilha
e que só uso eu; a nós vontade
basta – e alguma luz: pede-se intensa,
mas sem que obste o brilho à entrega cega,
aceitas? compreendes? aguentas?
no nervo negro desta densidade
penetra só sentindo que sustentas
e me conténs quando eu me desintegro.
- Margarida Vale de Gato
in Relâmpago n.º26, Fundação Luís Miguel Nava
PEDRO PAIXÃO
PEDRO PAIXÃO
Não se sabe como acontece, nem quando.
Digo o desejo, que tudo arrasta, tudo envolve num aperto que asfixia.
A vontade de anular todo o intervalo entre as coisas no ardor dos corpos, no misturar das línguas(...)
SEM FÔLEGO ASFIXIA
PEDRO PAIXÃO
-----------------------------------
CONFISSÃO
Quando passo ao de leve pela minha vida tudo ganha sentido. Mal paro, tropeço. Não posso parar. Bom é este fim de tarde doce e azul sem fundo que resplendece no ar. Tudo se torna suave e sei que sou parte inteira deste universo que, a esta hora, se mostra assim.
Queres saber onde estou? Estou no lugar onde qualquer pessoa que foi amada se encontra. No mexer, no sussurrar, na entrega, no incansável prazer, na alma a dois. Lindo é o meu amor nómada que não pára de fugir de paisagem em paisagem e me vem visitar sempre que o não espero. Para sentir bater mais forte o meu coração que ele envolve como uma serpente. E o meu sexo nos seus dentes.
Vem ter comigo que eu não espero mais.
É urgente elevar a pessoa à posição do espanto
Ando cada vez mais intrigado com o lugar para onde vão as coisas que vivemos. Deve por certo haver algures algum registo, um filme detalhado. Que isto não é só isto, senão bastava-se. O meu pai, por exemplo, continua a viver em mim. O que mostra bem a imortalidade das almas. O que eu não percebi talvez fosse para não ser percebido. O que vivi talvez fosse para não ter sido vivido. O que matei levo-o comigo fechado dentro de um saco. Sem poder ter a certeza. Se a tivesse dava-a de bom gosto a quem ma pedisse. Eu não nasci assim louco. Eu lentamente adoeci.
É urgente elevar a pessoa à posição do espanto. É daí que se abre o mundo. Qualquer coisa possui em si o mistério de tudo e a nossa distância vai daqui para ali, e volta. Há uma frase por escrever da qual esqueci as palavras e a gramática. Uma frase que junte coisas separadas, as nuvens e as suas sombras, animais fabulosos a sensíveis plantas, breves recados a fatais desenlaces. Uma frase é um laço apertado por um verbo. Eu conjugo verbos como quem se encontra diante de um precipício. É a morte por todo o lado espelhada que me faz escrever a frase. Entretanto deparo diante de mim com uma parede falsa. Os meus olhos escondem tudo o que descobrem por detrás dela. Uma parede não basta para fazer uma casa. Uma casa é uma concha. Uma concha é uma casa. Uma concha abre-se como uma porta. Uma porta que conduz de uma prisão a outra. Há uma prisão inexpugnável. Eu nunca serei tu. Deve ser esta a frase que pedia para ser escrita aguardando pacientemente. Mas quem saberá a verdade se o que nos aproxima é o que nos mantém afastados? Em primeiro lugar o geométrico espaço, em segundo o tempo que nunca se atrasa. É assim, sempre assim. Prosseguimos de segredo em segredo as mãos atadas à cabeça. Foi sempre assim estar aqui, nesta existência extrema.
Quase, é uma palavra notável. Todas as pessoas deviam ter por nome próprio quase. Eu sou quase, tu és quase, ele é quase, nós somos quase. Quase qualquer coisa que não chega a ser quase. Uma equação quase perfeita. Um número quase redondo que só existe dentro das nossas cabeças ligadas por fios primorosos. Fios de aço que amarram a loucura e a mantêm obediente. Não pretendas ser mais. As lágrimas que te escorrem pela cara desenham traços de temperatura variável. Continuam a surgir frases por escrever, amores inacabados. O amor é sequioso como uma planta. O melhor é a água. Não há outra maneira. A felicidade é coisa que acontece tarde. Da qual só se tem notícia depois de ter sido. Quando alguém clama: sou feliz, está a preparar-se para a desgraça. Imensas são as coisas que só existem no tempo passado. Não há vagas, quer no inferno, quer no paraíso. Suceder já quer dizer sucedido, porque triunfar é um verbo a morrer. Há em mim qualquer um que tem saudades de si. Saudades imperiosas, bruscas, inevitáveis. Continuo a ignorar para onde foi o que fui, em que casas acordam as pessoas que amei. Dói quase. Assim, sempre assim. Uma espécie de distância que não pode ser percorrida.
PEDRO PAIXÃO
Não se sabe como acontece, nem quando.
Digo o desejo, que tudo arrasta, tudo envolve num aperto que asfixia.
A vontade de anular todo o intervalo entre as coisas no ardor dos corpos, no misturar das línguas(...)
SEM FÔLEGO ASFIXIA
PEDRO PAIXÃO
-----------------------------------
CONFISSÃO
Quando passo ao de leve pela minha vida tudo ganha sentido. Mal paro, tropeço. Não posso parar. Bom é este fim de tarde doce e azul sem fundo que resplendece no ar. Tudo se torna suave e sei que sou parte inteira deste universo que, a esta hora, se mostra assim.
Queres saber onde estou? Estou no lugar onde qualquer pessoa que foi amada se encontra. No mexer, no sussurrar, na entrega, no incansável prazer, na alma a dois. Lindo é o meu amor nómada que não pára de fugir de paisagem em paisagem e me vem visitar sempre que o não espero. Para sentir bater mais forte o meu coração que ele envolve como uma serpente. E o meu sexo nos seus dentes.
Vem ter comigo que eu não espero mais.
É urgente elevar a pessoa à posição do espanto
Ando cada vez mais intrigado com o lugar para onde vão as coisas que vivemos. Deve por certo haver algures algum registo, um filme detalhado. Que isto não é só isto, senão bastava-se. O meu pai, por exemplo, continua a viver em mim. O que mostra bem a imortalidade das almas. O que eu não percebi talvez fosse para não ser percebido. O que vivi talvez fosse para não ter sido vivido. O que matei levo-o comigo fechado dentro de um saco. Sem poder ter a certeza. Se a tivesse dava-a de bom gosto a quem ma pedisse. Eu não nasci assim louco. Eu lentamente adoeci.
É urgente elevar a pessoa à posição do espanto. É daí que se abre o mundo. Qualquer coisa possui em si o mistério de tudo e a nossa distância vai daqui para ali, e volta. Há uma frase por escrever da qual esqueci as palavras e a gramática. Uma frase que junte coisas separadas, as nuvens e as suas sombras, animais fabulosos a sensíveis plantas, breves recados a fatais desenlaces. Uma frase é um laço apertado por um verbo. Eu conjugo verbos como quem se encontra diante de um precipício. É a morte por todo o lado espelhada que me faz escrever a frase. Entretanto deparo diante de mim com uma parede falsa. Os meus olhos escondem tudo o que descobrem por detrás dela. Uma parede não basta para fazer uma casa. Uma casa é uma concha. Uma concha é uma casa. Uma concha abre-se como uma porta. Uma porta que conduz de uma prisão a outra. Há uma prisão inexpugnável. Eu nunca serei tu. Deve ser esta a frase que pedia para ser escrita aguardando pacientemente. Mas quem saberá a verdade se o que nos aproxima é o que nos mantém afastados? Em primeiro lugar o geométrico espaço, em segundo o tempo que nunca se atrasa. É assim, sempre assim. Prosseguimos de segredo em segredo as mãos atadas à cabeça. Foi sempre assim estar aqui, nesta existência extrema.
Quase, é uma palavra notável. Todas as pessoas deviam ter por nome próprio quase. Eu sou quase, tu és quase, ele é quase, nós somos quase. Quase qualquer coisa que não chega a ser quase. Uma equação quase perfeita. Um número quase redondo que só existe dentro das nossas cabeças ligadas por fios primorosos. Fios de aço que amarram a loucura e a mantêm obediente. Não pretendas ser mais. As lágrimas que te escorrem pela cara desenham traços de temperatura variável. Continuam a surgir frases por escrever, amores inacabados. O amor é sequioso como uma planta. O melhor é a água. Não há outra maneira. A felicidade é coisa que acontece tarde. Da qual só se tem notícia depois de ter sido. Quando alguém clama: sou feliz, está a preparar-se para a desgraça. Imensas são as coisas que só existem no tempo passado. Não há vagas, quer no inferno, quer no paraíso. Suceder já quer dizer sucedido, porque triunfar é um verbo a morrer. Há em mim qualquer um que tem saudades de si. Saudades imperiosas, bruscas, inevitáveis. Continuo a ignorar para onde foi o que fui, em que casas acordam as pessoas que amei. Dói quase. Assim, sempre assim. Uma espécie de distância que não pode ser percorrida.
PEDRO PAIXÃO
LUIZ DUTRA
LUIZ DUTRA
Navega meu olho,
no olhar de alguém.
Enquanto cego,
tateando no ontem,
buscando no hoje encontrar o amanhã,
a manhã se faz negra,
a tarde não chega
e minha cara esbarra nos muros das tuas palavras...
Os pensamentos tateiam,
o nariz alcança teu perfume,
e louco de tanto ciúme,
minhas pernas apressam a caminhada...
Por fim nada encontro,
e desencontrado o buscado,
arranco de dentro de mim
dois sonhos recém formados e os coloco a substituir meus olhos
e durmo tranquilo enxergando nós dois rodopiando no imenso salão de esquecer jamais...
Navega meu olho,
no olhar de alguém.
Enquanto cego,
tateando no ontem,
buscando no hoje encontrar o amanhã,
a manhã se faz negra,
a tarde não chega
e minha cara esbarra nos muros das tuas palavras...
Os pensamentos tateiam,
o nariz alcança teu perfume,
e louco de tanto ciúme,
minhas pernas apressam a caminhada...
Por fim nada encontro,
e desencontrado o buscado,
arranco de dentro de mim
dois sonhos recém formados e os coloco a substituir meus olhos
e durmo tranquilo enxergando nós dois rodopiando no imenso salão de esquecer jamais...
Efigênia Coutinho
CANTO ESTRELAR...
Tem um sonho que canta o coração,
E vai beijando a terra, mar e o Luar
E vai clamando sua inspiração fora
Exultando dentro como um vulcão ...
Que ansiedade lhe agita? Murmúrios!
Que palavras confidenciam estes lábios,
A gemer beijos de amor com estrelas....
Tudo está além, em céus mais azuis...
Ergue teus braços ao ar, haveis de sentir
Essas aspirações, nas dobras do coração!
Longa,cálida, assim fala na voz do Luar
Entre feixes de luzes, prata e púrpura...
São mundos Novos, em céu celeste
Os astros sorrindo nas esferas...
Dos sonhos que o Ideal encerras!
Efigênia Coutinho
Tem um sonho que canta o coração,
E vai beijando a terra, mar e o Luar
E vai clamando sua inspiração fora
Exultando dentro como um vulcão ...
Que ansiedade lhe agita? Murmúrios!
Que palavras confidenciam estes lábios,
A gemer beijos de amor com estrelas....
Tudo está além, em céus mais azuis...
Ergue teus braços ao ar, haveis de sentir
Essas aspirações, nas dobras do coração!
Longa,cálida, assim fala na voz do Luar
Entre feixes de luzes, prata e púrpura...
São mundos Novos, em céu celeste
Os astros sorrindo nas esferas...
Dos sonhos que o Ideal encerras!
Efigênia Coutinho
José Carlos Soares
Ainda não tem nome
mas há-de vir
decerto, o nome
atrás da fome
do que não está
por perto. E há-de ser aflita
a rosa nas traseiras,
um chão de vespas dentro
e uma noite inteira.
- José Carlos Soares
in Chão de Vespas, edição do autor
------------------------------------------------
Se estiver aí, de mãos atadas
ao tempo, não me queiras
encontrar. Eu sei-te
chorando as minhas lágrimas, cuspindo
os estourados versos do instante. Palavras
por abrir e nenhum bem, guardados
ossos de ninguém.
- José Carlos Soares
in Bátega, edição do autor
mas há-de vir
decerto, o nome
atrás da fome
do que não está
por perto. E há-de ser aflita
a rosa nas traseiras,
um chão de vespas dentro
e uma noite inteira.
- José Carlos Soares
in Chão de Vespas, edição do autor
------------------------------------------------
Se estiver aí, de mãos atadas
ao tempo, não me queiras
encontrar. Eu sei-te
chorando as minhas lágrimas, cuspindo
os estourados versos do instante. Palavras
por abrir e nenhum bem, guardados
ossos de ninguém.
- José Carlos Soares
in Bátega, edição do autor
Merleau-Ponty
Merleau-Ponty
“ Para alcançar a totalidade é preciso unir visões parciais do olhar,
Unificar o que os olhos dispersam na natureza” Merleau-Ponty
" O sensível não éfeito somente de coisas.É feito também de tudo o que nelas se
desenha,mesmo no vazio dos intervalos,tudo que nelas deixa vestígio, tudo que nelas
se figura,mesmoa título de desvio e como uma certa ausência."Merleau-Ponty
------------------------------------------------------------------------------------------
“ Para alcançar a totalidade é preciso unir visões parciais do olhar,
Unificar o que os olhos dispersam na natureza” Merleau-Ponty
" O sensível não éfeito somente de coisas.É feito também de tudo o que nelas se
desenha,mesmo no vazio dos intervalos,tudo que nelas deixa vestígio, tudo que nelas
se figura,mesmoa título de desvio e como uma certa ausência."Merleau-Ponty
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Affonso Romano de Sant'Anna
'Crepusculando'
É inenarrável esse crepúsculo
em mim se desmaiando
essas cigarras acima do ruído urbano
essas flores no terraço cúmplices
me olhando.
É inenarrável esse céu
esse dia
em mim se desmanchando.
Ergo um brinde à luz
e sigo
crepusculando.
Affonso Romano de Sant'Anna
É inenarrável esse crepúsculo
em mim se desmaiando
essas cigarras acima do ruído urbano
essas flores no terraço cúmplices
me olhando.
É inenarrável esse céu
esse dia
em mim se desmanchando.
Ergo um brinde à luz
e sigo
crepusculando.
Affonso Romano de Sant'Anna
NIETZSCHE
... para aprender a apreciar uma música é preciso saber percebê-la,
delimitá-la, em sua própria expressão;
depois, é necessário esforço e boa vontade para suportá-la,
a despeito da sua estranheza...
ter paciência e ternura pelo que ela tem de singular;
chega, enfim, o momento em que nos habituamos a ela,
em que sentimos que teríamos saudade dela se ela nos faltasse...
Mas não é só com a música que isso nos acontece:
é justamente dessa maneira que aprendemos a amar todos os objetos que amamos.
Acabamos sendo compensados pela nossa boa vontade, paciência,
ternura pela estranheza, quando esta, pouco a pouco,
se desvela e vem oferecer-se a nós como uma nova beleza -
é essa a gratidão pela nossa hospitalidade.
É só desta forma que aprendemos a amar.
Também se deve aprender o amor!
(NIETZSCHE
delimitá-la, em sua própria expressão;
depois, é necessário esforço e boa vontade para suportá-la,
a despeito da sua estranheza...
ter paciência e ternura pelo que ela tem de singular;
chega, enfim, o momento em que nos habituamos a ela,
em que sentimos que teríamos saudade dela se ela nos faltasse...
Mas não é só com a música que isso nos acontece:
é justamente dessa maneira que aprendemos a amar todos os objetos que amamos.
Acabamos sendo compensados pela nossa boa vontade, paciência,
ternura pela estranheza, quando esta, pouco a pouco,
se desvela e vem oferecer-se a nós como uma nova beleza -
é essa a gratidão pela nossa hospitalidade.
É só desta forma que aprendemos a amar.
Também se deve aprender o amor!
(NIETZSCHE
JOSÉ NEWTON ALVES DE SOUSA
Se é a poesia, mais do que um impulso vocacional, uma capacidade que luta por realizar-se expressionalmente, refletindo ora o sujeito, ora o objeto, ou a ação, compreende-se que, antes de tomar forma externa, lírica, épica, satírica ou dramática, já é poesia, mas poesia em procura, poesia transitiva em relação a uma forma, buscada, que será, depois, re-buscada, entendendo-se êste último têrmo, não só no sentido de nova procura, mas também no de aprimoramento formal.
Antes de alguém parir seus poemas, já os viveu e reviveu, já lhes comunicou marca e pessoalidade inconfundíveis, de tal maneira que ninguém mais no mundo será capaz de os reviver e os recriar na mesma medida, no mesmo grau afetivo e na mesma plenitude do verdadeiro autor.
Essa pessoalidade essencial é que faz legítimo o poema, tornando-o irreproduzível, o que não significa inimitável, e único, o que não quer dizer não passível de semelhança com outro.
A poesia, em estado inicial, isto é, a poesia latente ainda, com relação aos outros, mas atualizada, com relação ao autor, já se denuncia pela vida, pelo gesto, pelo ser existencial do poeta, antes que êste a exprima em versos.
O tempo do nascimento do poema nem sempre coincide com o de sua concepção. Nem todo poeta tem pressa de revelar aos outros o que já é síntese de beleza e sofrimento em sua alma. Há, entretanto, uma poesia como que impulsiva, que se não contém pacientemente dentro, mas força uma saída, rompe a película do repouso, para ser corpo exterior atuante.
[…]
JOSÉ NEWTON ALVES DE SOUSA
(excerto inicial da conferência Considerações sôbre a Poesia de António Gedeão, Centro de Estudos Portugueses, da Faculdade de Filosofia do Crato, 1969)
Antes de alguém parir seus poemas, já os viveu e reviveu, já lhes comunicou marca e pessoalidade inconfundíveis, de tal maneira que ninguém mais no mundo será capaz de os reviver e os recriar na mesma medida, no mesmo grau afetivo e na mesma plenitude do verdadeiro autor.
Essa pessoalidade essencial é que faz legítimo o poema, tornando-o irreproduzível, o que não significa inimitável, e único, o que não quer dizer não passível de semelhança com outro.
A poesia, em estado inicial, isto é, a poesia latente ainda, com relação aos outros, mas atualizada, com relação ao autor, já se denuncia pela vida, pelo gesto, pelo ser existencial do poeta, antes que êste a exprima em versos.
O tempo do nascimento do poema nem sempre coincide com o de sua concepção. Nem todo poeta tem pressa de revelar aos outros o que já é síntese de beleza e sofrimento em sua alma. Há, entretanto, uma poesia como que impulsiva, que se não contém pacientemente dentro, mas força uma saída, rompe a película do repouso, para ser corpo exterior atuante.
[…]
JOSÉ NEWTON ALVES DE SOUSA
(excerto inicial da conferência Considerações sôbre a Poesia de António Gedeão, Centro de Estudos Portugueses, da Faculdade de Filosofia do Crato, 1969)
NIETZSCHE
Quem quer aprender a voar, precisa primeiro aprender a ficar de pé e a andar e a subir e dançar: a arte de voar não se aprende voando!
Aquele que ensinar os homens a voar afastará todos os limites, batizará a terra de novo como A Leve.
Quem quer se tornar leve e se transformar em pássaro deve se amar
[O homem é uma corda estendida entre a besta e o Super Homem - uma corda sobre o abismo.
É perigoso passar de um lado ao outro, perigoso ficar no caminho, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
O que há de grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é que ele é uma passagem e uma queda.
Por trás dos teus pensamentos e teus sentimentos, irmão, há um soberano possante e um sábio desconhecido. Ele mora no teu corpo, é teu corpo.
Há mais razão no teu corpo que na tua melhor sabedoria. Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.
E mesmo eu, que estou voltado para a vida, acho que as borboletas, as bolhas de sabão e o que se assemelha a elas entre os homens são o que melhor conhece a felicidade
(...)Nietzche, Assim Falava Zaratustra
Aquele que ensinar os homens a voar afastará todos os limites, batizará a terra de novo como A Leve.
Quem quer se tornar leve e se transformar em pássaro deve se amar
[O homem é uma corda estendida entre a besta e o Super Homem - uma corda sobre o abismo.
É perigoso passar de um lado ao outro, perigoso ficar no caminho, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
O que há de grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é que ele é uma passagem e uma queda.
Por trás dos teus pensamentos e teus sentimentos, irmão, há um soberano possante e um sábio desconhecido. Ele mora no teu corpo, é teu corpo.
Há mais razão no teu corpo que na tua melhor sabedoria. Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.
E mesmo eu, que estou voltado para a vida, acho que as borboletas, as bolhas de sabão e o que se assemelha a elas entre os homens são o que melhor conhece a felicidade
(...)Nietzche, Assim Falava Zaratustra
NIETZSCHE
Folguedo, Manhã E Vingança
Friedrich Wilhelm Nietzsche
Folguedo, Manhã E Vingança
29
Egoísmo Estelar
Se, similmente a tonel que rola,
eu girasse sem cessar em torno de mim,
como deixaria de arder?
A correr empós o sol ardente?
62
Ecce Homo
Sei de onde venho!
Insatisfeito como labareda
ardo para me consumir.
O que toco torna-se luz,
Carvão quando abandono:
sou, com certeza, labareda.
Friedrich Wilhelm Nietzsche
Folguedo, Manhã E Vingança
29
Egoísmo Estelar
Se, similmente a tonel que rola,
eu girasse sem cessar em torno de mim,
como deixaria de arder?
A correr empós o sol ardente?
62
Ecce Homo
Sei de onde venho!
Insatisfeito como labareda
ardo para me consumir.
O que toco torna-se luz,
Carvão quando abandono:
sou, com certeza, labareda.
Carlos Drummond de Andrade
Consideração do poema
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.
Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.
Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.
Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.
Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond
Yves Bonnefoy
"Poeta é quem, numa língua em que há sem dúvida noções inumeráveis,
idéias com pressa de dizer tudo, cria relações,
não entre idéias, mas entre palavras, pela via de uma beleza
de escrita que faz intervir as sonoridades, os ritmos,
e toma a parência de imagens, irredutíveis à análise."
"A poesia é antes de tudo
um modo de lutar contra a linguagem.
A linguagem trinca a realidade,
que é aquilo que substitui a representação mental.
Pode-se fazer poesia por causa do sentido das palavras
e entrar numa outra ordem de conceitos.
A poesia não significa, ela mostra"
Yves Bonnefoy
idéias com pressa de dizer tudo, cria relações,
não entre idéias, mas entre palavras, pela via de uma beleza
de escrita que faz intervir as sonoridades, os ritmos,
e toma a parência de imagens, irredutíveis à análise."
"A poesia é antes de tudo
um modo de lutar contra a linguagem.
A linguagem trinca a realidade,
que é aquilo que substitui a representação mental.
Pode-se fazer poesia por causa do sentido das palavras
e entrar numa outra ordem de conceitos.
A poesia não significa, ela mostra"
Yves Bonnefoy
Gilberto Mendonça Teles
Modernismo
No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.
No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo o jeito.
Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,
um individualista confesso, que adora luares,
que gosta de piqueniques e noitadas festivas,
mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.
Um sujeito que nesta recta de chegada dos cinquenta
sente que seu coração bate tão velozmente
que já nem agüenta esperar mais as moças
da geração incerta dos dois mil.
Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,
a minha expressão de timidez, as minhas várias
tentativas frustradas de D.Juan.
Vejam meu pessimismo político,
meu idealismo poético,
minhas leituras de passatempo.
Vejam meus tiques e etiquetas,
meus sapatos engraxados,
meus ternos enleios,
meu gosto pelo passado
e pelos presentes,
minhas cismas,
e raptos.
Vejam também minha linguagem
cheia de mins, de meus e de comos.
Vejam, e me digam se eu não sou mesmo
um sujeito romântico que contraiu o mal do século
e ainda morre de amor pela idade média
das mulheres.
Gilberto Mendonça Teles
No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.
No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.
Eu sou romântico de corpo e alma,
de dentro e fora,
de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.
Eu sou romântico de todo o jeito.
Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,
um individualista confesso, que adora luares,
que gosta de piqueniques e noitadas festivas,
mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.
Um sujeito que nesta recta de chegada dos cinquenta
sente que seu coração bate tão velozmente
que já nem agüenta esperar mais as moças
da geração incerta dos dois mil.
Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,
a minha expressão de timidez, as minhas várias
tentativas frustradas de D.Juan.
Vejam meu pessimismo político,
meu idealismo poético,
minhas leituras de passatempo.
Vejam meus tiques e etiquetas,
meus sapatos engraxados,
meus ternos enleios,
meu gosto pelo passado
e pelos presentes,
minhas cismas,
e raptos.
Vejam também minha linguagem
cheia de mins, de meus e de comos.
Vejam, e me digam se eu não sou mesmo
um sujeito romântico que contraiu o mal do século
e ainda morre de amor pela idade média
das mulheres.
Gilberto Mendonça Teles
Gilberto Mendonça Teles
Gilberto Mendonça Teles
A poesia mostra ao homem outros sentidos da existência, integra-o na plenitude da sua cultura, dá ênfase ao visível e escancara as janelas do invisível, amplia portanto o seu universo e lhe restitui a ilusão de sua divindade, uma vez que lhe dá o poder da criação através da linguagem. Ela tem a força natural dos álibis - que apontam para um e, ao mesmo tempo, para outro lugar, quase sempre utópico; e tem, como a Sibila o poder encantatório de nos fazer jogar com o sobrenatural. É por isso que os tiranos de todos os tempos e lugares temem os poetas e a poesia. E não é à toa que para Hölderlin ela é ao mesmo tempo a mais inocente das ocupações e o mais perigoso de todos os bens.
A poesia mostra ao homem outros sentidos da existência, integra-o na plenitude da sua cultura, dá ênfase ao visível e escancara as janelas do invisível, amplia portanto o seu universo e lhe restitui a ilusão de sua divindade, uma vez que lhe dá o poder da criação através da linguagem. Ela tem a força natural dos álibis - que apontam para um e, ao mesmo tempo, para outro lugar, quase sempre utópico; e tem, como a Sibila o poder encantatório de nos fazer jogar com o sobrenatural. É por isso que os tiranos de todos os tempos e lugares temem os poetas e a poesia. E não é à toa que para Hölderlin ela é ao mesmo tempo a mais inocente das ocupações e o mais perigoso de todos os bens.
James de Lima
ESCADAS
As escadas estão ali,
verticalmente.
Andando para sempre.
Pisei num abismo,
e entrei numa círculo vicioso.
Vim, vendo tudo se perdendo,
até que me encontro aqui,
num espelho, que, distorcendo-me,
torna-me estranho a mim mesmo.
Mas quem sabe
eu já não esteja
caminhando
para fora do círculo
e para dentro de mim mesmo.
Talvez eu já saiba um pouco.
Quem sabe...
James de Lima
As escadas estão ali,
verticalmente.
Andando para sempre.
Pisei num abismo,
e entrei numa círculo vicioso.
Vim, vendo tudo se perdendo,
até que me encontro aqui,
num espelho, que, distorcendo-me,
torna-me estranho a mim mesmo.
Mas quem sabe
eu já não esteja
caminhando
para fora do círculo
e para dentro de mim mesmo.
Talvez eu já saiba um pouco.
Quem sabe...
James de Lima
Anderson Braga Horta
APOESE
Mudas, incriadas,
jazem no possível
todas as palavras.
Nesse limbo inscrevem-se
invisivelmente
todos os poemas
ditos, por dizer,
mais os indizíveis.
Nesse limbo se amam,
bicam-se as palavras,
numa intimidade
por nós mal sonhada.
Relações repousam
insolicitadas,
frases adormecem
de desinvocadas,
e afinal se cruzam,
crispam-se, eriçadas
na ânsia de uma língua
— boca, pena, gesto.
Nesse inesgotável
lago das palavras,
onde tudo encontra
seu signo prateado,
mergulhou o Homem
e pescou sofismas,
teses, xingamentos,
jogos, alguns poemas.
Infinito é o Sonho
que, irrealizado,
dorme em apoese
nesse obscuro lago.
Anderson Braga Horta
In Fragmentos da Pixão (1971)
Mudas, incriadas,
jazem no possível
todas as palavras.
Nesse limbo inscrevem-se
invisivelmente
todos os poemas
ditos, por dizer,
mais os indizíveis.
Nesse limbo se amam,
bicam-se as palavras,
numa intimidade
por nós mal sonhada.
Relações repousam
insolicitadas,
frases adormecem
de desinvocadas,
e afinal se cruzam,
crispam-se, eriçadas
na ânsia de uma língua
— boca, pena, gesto.
Nesse inesgotável
lago das palavras,
onde tudo encontra
seu signo prateado,
mergulhou o Homem
e pescou sofismas,
teses, xingamentos,
jogos, alguns poemas.
Infinito é o Sonho
que, irrealizado,
dorme em apoese
nesse obscuro lago.
Anderson Braga Horta
In Fragmentos da Pixão (1971)
Sophia de Mello Breyner Andresen
As Rosas
Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Michel Tournier
…Um rosto desperto, curioso, extrovertido, seria uma catástrofe para o corpo nu. Não deixaria de o esvaziar, de lhe tirar a substância.(…)O bom rosto do nu é um rosto fechado, compacto, concentrado sobre si mesmo.
Michel Tournier
Michel Tournier
Adélia Prado
ESPLENDORES
Toda a compreensão é poesia,
clarão inaugural que névoa densa
faz parecer velados diamantes.
Em pequenos bocados,
como quem dá comida a criancinhas,
a beleza retém seu vórtice.
São águas de compaixão
e eu sobrevivo.
Adélia Prado
— A duração do dia
Toda a compreensão é poesia,
clarão inaugural que névoa densa
faz parecer velados diamantes.
Em pequenos bocados,
como quem dá comida a criancinhas,
a beleza retém seu vórtice.
São águas de compaixão
e eu sobrevivo.
Adélia Prado
— A duração do dia
ROLLO MAY
A CORAGEM DE CRIAR -ROLLO MAY
“A coragem é necessária para que o homem possa ser e
vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se.
Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza. A bolota
transforma-se em carvalho por crescimento automático; nenhum compromisso
consciente é necessário. O filhote transforma-se em gato pelo
instinto. Nessas criaturas, natureza e ser são idênticos. Mas um homem
ou uma mulher tornam-se humanos por vontade própria e por seu compromisso
com essa escolha”(...)
(...)A principal característica dessa coragem é originar-se no centro, no interior do nosso eu, pois do contrário nos sentiremos vazios. (...)
ROLLO MAY
“A coragem é necessária para que o homem possa ser e
vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se.
Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza. A bolota
transforma-se em carvalho por crescimento automático; nenhum compromisso
consciente é necessário. O filhote transforma-se em gato pelo
instinto. Nessas criaturas, natureza e ser são idênticos. Mas um homem
ou uma mulher tornam-se humanos por vontade própria e por seu compromisso
com essa escolha”(...)
(...)A principal característica dessa coragem é originar-se no centro, no interior do nosso eu, pois do contrário nos sentiremos vazios. (...)
ROLLO MAY
PABLO NERUDA
LA PALABRA NERUDA
... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ...
Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.
PABLO NERUDA
... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ...
Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.
PABLO NERUDA
Rainer Maria Rilke
Rainer Maria Rilke: "Archaïscher Torso Apollos" / "Torso arcaico de Apolo": trad. Manuel Bandeira
Torso arcaico de Apolo
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.
Torso arcaico de Apolo
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.
Roseana Murray
a vida é isso?
Espanto por espanto
a vida é isso?
essa espera de auroras
boreais
estar a sós com seus
pensamentos
falcões amestrados
em direção do passado
ao futuro
ao fundo duro
dos abismos?
o tempo não se mexe
penhasco imutável
no oceano das horas
nós é que nos vamos
estranhas marionetes
sem rumo
então a vida é isso
segundo por segundo
estrela por estrela
espanto por espanto
Roseana Murray
Espanto por espanto
a vida é isso?
essa espera de auroras
boreais
estar a sós com seus
pensamentos
falcões amestrados
em direção do passado
ao futuro
ao fundo duro
dos abismos?
o tempo não se mexe
penhasco imutável
no oceano das horas
nós é que nos vamos
estranhas marionetes
sem rumo
então a vida é isso
segundo por segundo
estrela por estrela
espanto por espanto
Roseana Murray
CLARICE LISPECTOR
A Viagem Lispector
A Viagem - Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector)
“......... E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”
A Viagem - Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector)
“......... E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”
NIETZSCHE
“O pensamento...emerge em mim- de onde? Por meio de que? Não sei. Ele vem, independentemente de minha vontade costumeiramente envolto e ensombrecido por uma multidão de sentimentos, desejos, aversões, também de outros pensamentos... Nós o extraímos de tal multidão, limpamos, colocamo-lo sobre seus pés... quem faz isso tudo- não sei, e sou aqui, seguramente mais espectador do que causa desse processo... Que em todo pensar parece tomar parte uma multiplicidade de pessoas-: isso não é, de maneira alguma, fácil de observar, somos fundamentalmente mais fortes no inverso, ou seja, ao pensar, não pensar no pensar. A origem do pensamento permanece oculta; é grande a probabilidade de que ele é apenas sintoma de um estado muito mais abrangente;que justamente ele chega e nenhum outro,
que ele chega justamente com essa maior ou menor clareza, por vezes seguro
e imperioso, por vezes fraco e carente de apoio...exprime-se em sinais, em
tudo isso, alguma coisa de nosso estado global ”(F. Nietzsche - Fragmento póstumo; GA
XIV,40s.Junho-julho de 1885 ,n. 38[1]; KGW VII3,p. 323 s , apud Muller-
Lauter, op.cit., p. 150).
que ele chega justamente com essa maior ou menor clareza, por vezes seguro
e imperioso, por vezes fraco e carente de apoio...exprime-se em sinais, em
tudo isso, alguma coisa de nosso estado global ”(F. Nietzsche - Fragmento póstumo; GA
XIV,40s.Junho-julho de 1885 ,n. 38[1]; KGW VII3,p. 323 s , apud Muller-
Lauter, op.cit., p. 150).
Carlos Drummond de Andrade
cálido e emocionante Drummond
"... Prosseguimos.
Reinauguramos.Abrimos olhos gulosos a um sol diferente
que nos acorda para os descobrimentos.
...Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura em perpétua criação..."
(Carlos Drummond de Andrade)
"... Prosseguimos.
Reinauguramos.Abrimos olhos gulosos a um sol diferente
que nos acorda para os descobrimentos.
...Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura em perpétua criação..."
(Carlos Drummond de Andrade)
Guimarães Rosa
Sei: agudos os ossos da alma
"in AVE PALAVRA"
"Eu estava ali, cheio de mente,
Nas margens do meu mar de morte,
morada de ninguém; apenas minha?
em meio de muito pranto.
Sei: agudos os ossos da alma
e toda beleza é distante.
Só o túmulo obedece.
todo ídolo é tentativa de deter o tempo.
(nem o ar é meu, nem
o que é meu. E o relato
que é meu, do chão
do mar.)
eu morro de terrível autenticidade!
Não! que
ou ainda não sou! Que
eu ainda não sou saudade...
Senhora, sinto-vos: o
choque angélico.
Saudade - as modulações do escuro;
as
falenas de além-fogo, e
uma nudez de espada:
a ardente neutralidade de um anjo."
Guimarães Rosa
"in AVE PALAVRA"
"Eu estava ali, cheio de mente,
Nas margens do meu mar de morte,
morada de ninguém; apenas minha?
em meio de muito pranto.
Sei: agudos os ossos da alma
e toda beleza é distante.
Só o túmulo obedece.
todo ídolo é tentativa de deter o tempo.
(nem o ar é meu, nem
o que é meu. E o relato
que é meu, do chão
do mar.)
eu morro de terrível autenticidade!
Não! que
ou ainda não sou! Que
eu ainda não sou saudade...
Senhora, sinto-vos: o
choque angélico.
Saudade - as modulações do escuro;
as
falenas de além-fogo, e
uma nudez de espada:
a ardente neutralidade de um anjo."
Guimarães Rosa
Hélio Pellegrino
Alguma coisa que é insubornável...
Na juventude, já grande amigo do escritor Fernando Sabino, Hélio Pellegrino lhe escreveu a seguinte mensagem:
“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo em sua liberrérima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece seu nome.”
ALGUMA COISA
Para Guilhermo César
Alguma coisa resta: um gesto
nos tendões da mão engelhada.
Uma efusão inacabada
na ferrugem da pele-resto.
Alguma coisa que é da raça
dos minerais, insubornável,
além do amargo e do caroável,
do que perdura – e do que passa.
Alguma coisa inscrita: um grito
no fulgor do dedo anular.
Um puro incêndio sem queimar,
- como um segredo afinal dito.
Porto Alegre, 8/11/86
Hélio Pellegrino
In: Minérios Domados
Na juventude, já grande amigo do escritor Fernando Sabino, Hélio Pellegrino lhe escreveu a seguinte mensagem:
“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo em sua liberrérima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece seu nome.”
ALGUMA COISA
Para Guilhermo César
Alguma coisa resta: um gesto
nos tendões da mão engelhada.
Uma efusão inacabada
na ferrugem da pele-resto.
Alguma coisa que é da raça
dos minerais, insubornável,
além do amargo e do caroável,
do que perdura – e do que passa.
Alguma coisa inscrita: um grito
no fulgor do dedo anular.
Um puro incêndio sem queimar,
- como um segredo afinal dito.
Porto Alegre, 8/11/86
Hélio Pellegrino
In: Minérios Domados
Raul Machado
Fico, em volúpia, a olhar, numa atitude abstrata..
SERENIDADE
Fico, em volúpia, a olhar, numa atitude abstrata,
Os quadros de oiro e luz de um pôr de sol tristonho,
Há na minh’alma uma tendência inata
Para a serenidade e para o sonho.
Maldigo o vendaval, que em desvairado giro
As florestas contorce, em crispações estranhas.
E à inquietude do mar, sempre aflito, prefiro
A sugestiva paz, absorta, das montanhas.
Amo a contemplação, que em êxtases contritos
O espírito feliz transfigura e enaltece
E o pensamento eleva aos astros infinitos,
Nas asas de uma rima e ao vôo de uma prece.
Rica de poesia, a placidez evoca,
Em brumas de saudade, o sonho já sepulto ...
E o silêncio, fecundo, não se troca
Pela esterilidade do tumulto.
Homem! No coração o ódio reprime!
As paixões, faze tudo para contê-las!
Que o céu, sem nuvens, ainda é mais sublime!
E a água quieta é que reflete estrelas ...
Raul Machado
SERENIDADE
Fico, em volúpia, a olhar, numa atitude abstrata,
Os quadros de oiro e luz de um pôr de sol tristonho,
Há na minh’alma uma tendência inata
Para a serenidade e para o sonho.
Maldigo o vendaval, que em desvairado giro
As florestas contorce, em crispações estranhas.
E à inquietude do mar, sempre aflito, prefiro
A sugestiva paz, absorta, das montanhas.
Amo a contemplação, que em êxtases contritos
O espírito feliz transfigura e enaltece
E o pensamento eleva aos astros infinitos,
Nas asas de uma rima e ao vôo de uma prece.
Rica de poesia, a placidez evoca,
Em brumas de saudade, o sonho já sepulto ...
E o silêncio, fecundo, não se troca
Pela esterilidade do tumulto.
Homem! No coração o ódio reprime!
As paixões, faze tudo para contê-las!
Que o céu, sem nuvens, ainda é mais sublime!
E a água quieta é que reflete estrelas ...
Raul Machado
HILDA HILST
a fibra delicada que constroe a solidão..
Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto
te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.
Tocaram-te, nas tarde, assim como tocaste,
adolescente, a superfície parada de umas águas?
Tens ainda nas mãos a pequena raiz,
A fibra delicada que a si se construía em solidão?
Hilda Hilst
Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto
te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.
Tocaram-te, nas tarde, assim como tocaste,
adolescente, a superfície parada de umas águas?
Tens ainda nas mãos a pequena raiz,
A fibra delicada que a si se construía em solidão?
Hilda Hilst
Hermann Hesse
ritmo Hesse
A noite
Rescende a flor na várzea,
longínqua flor da infância
que só de raro em raro ao sonhador
abre o velado cálice
e deixa ver – cópia do sol – seu interior.
Por cima das cordilheiras azuis
cega a noite vagueia
puxando sobre o seio a veste escura:
sorrindo esparze a esmo
sua dádiva – o sonho.
Curtidos pelo dia, em baixo dormem
os homens: têm os olhos
cheios de sonhos,
alguns viram o rosto suspirando
para as flores da infância
cujo aroma os atrai de leve na penumbra,
e ao severo chamado paternal do dia
confortados se alheiam.
Para o exausto, é um alívio
refugiar-se nos braços da mãe
que os cabelos do sonhador alisa
com mãos despreocupadas.
Somos crianças, logo nos fatiga o sol
- ainda que seja para nós destino e futuro sagrado –
e tombamos a cada anoitecer
pequeninos de novo no regaço da mãe,
balbuciamos palavras da infância,
palpamos o caminho do regresso às origens.
Também o pesquisador solitário
que para o vôo ao sol se propusera
vacila, também ele, à meia-noite
voltado para o ponto de partida longe.
E o que dorme, quando um pesadelo o desperta,
confusa a alma, pressente no escuro
a hesitante verdade:
toda corrida, para o sol ou para a noite,
conduz à morte, leva a novo nascimento,
dores que a alma receia.
Mas seguem todos o mesmo caminho:
todos morrem e tornam a nascer,
porque a eterna mãe
devolve-os eternamente ao dia.
Hermann Hesse
A noite
Rescende a flor na várzea,
longínqua flor da infância
que só de raro em raro ao sonhador
abre o velado cálice
e deixa ver – cópia do sol – seu interior.
Por cima das cordilheiras azuis
cega a noite vagueia
puxando sobre o seio a veste escura:
sorrindo esparze a esmo
sua dádiva – o sonho.
Curtidos pelo dia, em baixo dormem
os homens: têm os olhos
cheios de sonhos,
alguns viram o rosto suspirando
para as flores da infância
cujo aroma os atrai de leve na penumbra,
e ao severo chamado paternal do dia
confortados se alheiam.
Para o exausto, é um alívio
refugiar-se nos braços da mãe
que os cabelos do sonhador alisa
com mãos despreocupadas.
Somos crianças, logo nos fatiga o sol
- ainda que seja para nós destino e futuro sagrado –
e tombamos a cada anoitecer
pequeninos de novo no regaço da mãe,
balbuciamos palavras da infância,
palpamos o caminho do regresso às origens.
Também o pesquisador solitário
que para o vôo ao sol se propusera
vacila, também ele, à meia-noite
voltado para o ponto de partida longe.
E o que dorme, quando um pesadelo o desperta,
confusa a alma, pressente no escuro
a hesitante verdade:
toda corrida, para o sol ou para a noite,
conduz à morte, leva a novo nascimento,
dores que a alma receia.
Mas seguem todos o mesmo caminho:
todos morrem e tornam a nascer,
porque a eterna mãe
devolve-os eternamente ao dia.
Hermann Hesse
CLARICE LISPECTOR
Quer saber o que eu penso? Você aguentaria conhecer minha verdade? Pois tome. Prove. Sinta. Eu tenho preguiça de quem não comete erros. Tenho profundo sono de quem prefere o morno. Eu gosto do risco. Dos que arriscam. Tenho admiração nata por quem segue o coração. Eu acredito nas pessoas livres. Liberdade de ser. Coragem boa de se mostrar. Dar a cara a tapa! Ser louca, estranha, chata! Eu sou assim. Tenho um milhão de defeitos. Sou volúvel. Sou viciada em gente. Adoro ficar sozinha. Mas eu vivo para sentir. Por isso, eu te peço. Me provoque. Me beije a boca. Me desafie. Me tire do sério. Me tire do tédio. Vire meu mundo do avesso! Mas, pelo amor de Deus, me faça sentir... Um beliscãozinho que for, me dê. Eu quero rir até a barriga doer. Chorar e ficar com cara de sapo. Este é o meu alimento: palavras para uma alma com fome. "
(Clarice Lispector).
(Clarice Lispector).
João Cabral de Melo Neto
açula a atenção!isca-a com o risco
'Catar feijão'
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e o oco; palha e eco.
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
João Cabral de Melo Neto
In:"A educação pela pedra"
'Catar feijão'
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e o oco; palha e eco.
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
João Cabral de Melo Neto
In:"A educação pela pedra"
Marilena Chauí
vejamo-las em sua mudez...
...''Ver as palavras. Delas chegar perto. Contemplá-las: antes do poema são coisas visuais e, como todo visível, "tem mil faces secretas sob a face neutra". Antes que espalhem sentido e beleza, antes que falem, vejamo-las em sua mudez. Acerquemo-nos delas "em estado de dicionário". Quais escolheremos? Aquelas que nos fazem ver o vínculo secreto entre o olhar e o conhecimento...''
Janela da Alma, espelho do mundo -Marilena Chauí
...''Ver as palavras. Delas chegar perto. Contemplá-las: antes do poema são coisas visuais e, como todo visível, "tem mil faces secretas sob a face neutra". Antes que espalhem sentido e beleza, antes que falem, vejamo-las em sua mudez. Acerquemo-nos delas "em estado de dicionário". Quais escolheremos? Aquelas que nos fazem ver o vínculo secreto entre o olhar e o conhecimento...''
Janela da Alma, espelho do mundo -Marilena Chauí
PIER PAOLO PASOLINI
anatomia da lingua
(...) Para me fazer compreender, tenho que referir-me à afirmação (...) de que existe antes de tudo o mais uma linguagem da acção (que dizemos assim, por analogia, semiológica, nas expressões "linguagens da moda, linguagem das flores", etc., etc.): falei já de um poema de acção a propósito de Lenine... Pois bem, talvez impelido pela grande vaga de empirismo, por um lado, e, por outro lado, de moralismo que investe o mundo dos anos presentes, quero insistir neste ponto.
A primeira linguagem dos homens parece-me, portanto, o seu agir. A língua escrito-falada não é mais do que uma integração e um meio deste agir. mesmo o grau máximo de autonomia da língua relativamente a este agir humano - ou seja: o momento puramente expressivo da língua - a poesia - não é por sua vez senão uma nova forma de acção: no momento em que o leitor a escuta ou a lê, em resumo: a percepciona, liberta-a de novo da convenção linguística e recria-a como dinâmica dos sentimentos, dos afectos, das paixões, das ideias: redu-la a entidade audiovisual, quer dizer: reprodução da realidade, acção - e eis como o círculo se fecha. (...)
PIER PAOLO PASOLINI
(in "Emprisismo Herege";
Tradução de Miguel Serras Pereira)
(...) Para me fazer compreender, tenho que referir-me à afirmação (...) de que existe antes de tudo o mais uma linguagem da acção (que dizemos assim, por analogia, semiológica, nas expressões "linguagens da moda, linguagem das flores", etc., etc.): falei já de um poema de acção a propósito de Lenine... Pois bem, talvez impelido pela grande vaga de empirismo, por um lado, e, por outro lado, de moralismo que investe o mundo dos anos presentes, quero insistir neste ponto.
A primeira linguagem dos homens parece-me, portanto, o seu agir. A língua escrito-falada não é mais do que uma integração e um meio deste agir. mesmo o grau máximo de autonomia da língua relativamente a este agir humano - ou seja: o momento puramente expressivo da língua - a poesia - não é por sua vez senão uma nova forma de acção: no momento em que o leitor a escuta ou a lê, em resumo: a percepciona, liberta-a de novo da convenção linguística e recria-a como dinâmica dos sentimentos, dos afectos, das paixões, das ideias: redu-la a entidade audiovisual, quer dizer: reprodução da realidade, acção - e eis como o círculo se fecha. (...)
PIER PAOLO PASOLINI
(in "Emprisismo Herege";
Tradução de Miguel Serras Pereira)
Sophia de Mello Breyner Andresen
Sozinha caminhei num labirinto
Aproximei meu rosto do silêncio e da treva
Para buscar a luz de um dia limpo
Sophia de Mello Breyner Andresen, Poemas Escolhidos. São Paulo: Cia das Letras, 2004
ITALO CALVINO
sair da obtusa e ignorante inteireza
“- Que se pudesse partir ao meio toda coisa inteira - disse meu tio, de bruços no rochedo, acariciando aquelas metades convulsivas de polvo - que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você há de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços.” [p. 52]
CALVINO, Ítalo. O visconde partido ao meio - tradução Nilson Moulin- São Paulo: Companhia das Letras, 1996
“- Que se pudesse partir ao meio toda coisa inteira - disse meu tio, de bruços no rochedo, acariciando aquelas metades convulsivas de polvo - que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você há de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços.” [p. 52]
CALVINO, Ítalo. O visconde partido ao meio - tradução Nilson Moulin- São Paulo: Companhia das Letras, 1996
FERREIRA GULLAR
O poema nasce do espanto
“O poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensível. Vou contar uma história: um dia, estava vendo televisão e o telefone tocou. Mal me ergui para atendê-lo, o fêmur de uma das minhas pernas bateu no osso da bacia. Algo do tipo já acontecera antes? Com certeza. Entretanto, naquela ocasião, o atrito dos ossos me espantou. Uma ocorrência explicável de súbito ganhou contornos inexplicáveis. Quer dizer que sou osso?, refleti, surpreso. Eu sou osso? Osso pergunta? A parte que em mim pergunta é igualmente osso? Na tentativa de elucidar os questionamentos despertados pelo espanto, eclode um poema. Entende agora por que demoro 10, 12 anos para lançar um novo livro de poesia? Porque preciso do espanto.”
FERREIRA GULLAR em entrevista concedida a Armando Antenore para a Revista Bravo em março/2009
“O poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensível. Vou contar uma história: um dia, estava vendo televisão e o telefone tocou. Mal me ergui para atendê-lo, o fêmur de uma das minhas pernas bateu no osso da bacia. Algo do tipo já acontecera antes? Com certeza. Entretanto, naquela ocasião, o atrito dos ossos me espantou. Uma ocorrência explicável de súbito ganhou contornos inexplicáveis. Quer dizer que sou osso?, refleti, surpreso. Eu sou osso? Osso pergunta? A parte que em mim pergunta é igualmente osso? Na tentativa de elucidar os questionamentos despertados pelo espanto, eclode um poema. Entende agora por que demoro 10, 12 anos para lançar um novo livro de poesia? Porque preciso do espanto.”
FERREIRA GULLAR em entrevista concedida a Armando Antenore para a Revista Bravo em março/2009
CLARICE LISPECTOR
Eu vi dentro de um olho
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara _o mal-estar já petrificado subia com esforço até sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crostra_ mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. (...) Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.
LISPECTOR, Clarice. Os desastres de Sofia. In: LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.21-22.
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara _o mal-estar já petrificado subia com esforço até sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crostra_ mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. (...) Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.
LISPECTOR, Clarice. Os desastres de Sofia. In: LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.21-22.
HILDA HILST
Procuro uma maneira sábia de me pensar.
Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros debaixo do braço e se via alguém mais louco que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou: eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é o teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão: Não tenho não senhor. Só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos.
HILST, Hilda. Qadós. In: HILST, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977.
Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros debaixo do braço e se via alguém mais louco que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou: eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é o teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão: Não tenho não senhor. Só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos.
HILST, Hilda. Qadós. In: HILST, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977.
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