quinta-feira, 24 de março de 2011

Rainer Maria Rilke

PRIMEIRA ELEGIA




Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens

Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse

Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria

Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é

Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,

E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha

Destruir-nos. Cada anjo é terrível.

E assim me contenho pois, e reprimo o apelo



De obscuro soluço. Ah! A quem podemos

Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,

E os animais sagazes logo percebem

Que não estamos muito seguros

No mundo interpretado. Resta-nos talvez

Alguma árvore na encosta que diariamente

Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem

E a mimada fidelidade de um hábito,

Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.

Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços

Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,

Levemente decepcionante, que para o solitário coração

Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?

Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.

Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio

Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros

Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.



Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas

Esperavam que tu as percebesses. Do passado

Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou

Ao passares sob uma janela aberta,

Um violino se entregava. Tudo isso era missão.

Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre

Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse

A bem amada? (onde queres abrigá-la

Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram

E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)

Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito

Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.

Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu

Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas. Começa

Sempre de novo o louvor jamais acessível;

Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi

Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.

As amantes, porém, a natureza exausta as toma

Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.

Já pensaste pois em Gaspara Stampa

O bastante para que alguma jovem,

A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo

Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?

Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar

Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,

Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos Como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?

Pois parada não há em /parte alguma.



Vozes, vozes.Escuta, coração como outrora somente

os santos escutavam: até que o gigantesco apelo

levantava-os do chão; mas eles continuavam ajoelhados,

inabaláveis, sem desviarem a atenção:

eles assim escutavam. Não que tu pudesses suportar

a voz de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,

a incessante mensagem que nasce do silêncio.

Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.

Onde quer que penetraste, nas igrejas

De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?

Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti

Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.

Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar

A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco

O puro movimento de seus espíritos.



Certo, é estranho não habitar mais terra,

Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,

Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas

Não dar sentido do futuro humano;

O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo

Não ser mais, e até o próprio nome

Deixar de lado como um brinquedo quebrado.

Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,

Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto

No espaço. E estar morto é penoso

E cheio de recuperações, até que lentamente se divise

Um pouco da eternidade. - Mas os vivos

Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.

Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes

Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna

Arrebata através de ambos os reinos todas as idades

Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.



Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,

Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno

suavemente se deixa, ao crescer.Mas nós que de tão grandes

mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes

o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?

É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,

A primeira música ousando atravessou o árido letargo,

Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente

escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou

naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?





Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu

publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos

de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o

antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.

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