quinta-feira, 24 de março de 2011

FRIEDRICH HOELDERLIN

1


PÃO E VINHO (Friedrich Hoelderlin – 1770-1843)



1

Dorme a cidade à volta; cala-se a rua iluminada

E, ornados de tochas, partem os carros rumorosos.

Fartos do dia intenso, os homens vão-se repousar em casa

E uma cabeça ajuizada pondera lucros e perdas

No conforto do seu lar; vazio de racimos, de flores,

De coisas feitas a mão, jaz tranqüilo o operoso mercado.

Mas sons de músicas soam longe, nos jardins, por onde

Talvez toque um enamorado ou lembre um solitário

A mocidade, os amigos distantes; ouvem-se as fontes

Correndo, sempre frescas, junto aos canteiros perfumosos.

Numa surda alegria, repicam sinos ao crepúsculo

E, atento ao curso das horas, um vigia as vai gritando.

Vem um sopro agitar o topo das árvores do bosque

E também, vede! Silhueta de nossa Terra, a Lua

Secretamente surge; desdobra-se a noite inspiradora,

Cheia de estrelas e muito pouco preocupada conosco.

Cintilante, surpreendente, forasteira em meio aos homens,

Ela se eleva, melancolia e pompa, sobre os montes.
2


2

Maravilhosa é a graça da Altíssima e ninguém sabe

Donde provém ela nem o que dela lhe caberá.

Eis como ela move o mundo e a alma esperançosa dos homens.

Sábio algum compreende bem o que ela prepara porque

Assim o determina o deus supremo, que muito te ama;

Por isso, em vez dela preferes o dia circunspecto.

Mas de quando em quando o olhar límpido ama também a sombra

E busca por gosto, mais do que por necessidade, o sono;

O homem fidedigno, por gosto também, perscruta a noite.

Sim, não quadra mal oferecer-lhe coroas e cânticos

Porque a noite está consagrada aos insensatos e aos mortos,

Mas ela própria mantém sempre e sempre o espírito isento.

Todavia, cumpre-lhe ainda, para que, na hora hesitante,

Possamos em meio à treva encontrar algo palpável,

Propiciar-nos o esquecimento, a sagrada embriaguez, dar-nos

A palavra transbordante que, como os enamorados,

Seja insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa

E a sagrada memória em vigília até o fim da noite.
3


Em vão calamos o coração no peito, o sentimento

Em vão o contemos, nós, mestres e aprendizes, pois quem

Iria impedi-lo, iria proibir nossa alegria?

O fogo divino também nos incita, dia e noite,

A ir adiante. Vem, pois, contemplar o aberto, buscar

Um bem que seja o nosso próprio, por distante que esteja!

Uma coisa é segura: por volta do meio-dia ou perto

Da meia-noite, existe sempre uma medida comum

Para todos, mas há para cada um bem particular.

A busca-lo vai cada um e chega até onde consegue.

Que da troça troce a alegre insensatez quando apossar-se

Repentinamente dos poetas na noite sagrada.

Vem para o Istmo, pois! Lá onde o mar aberto canta ao pé

Do Parnaso, e o brilho da neve envolve os rochedos délficos.

Lá no país do Olimpo, lá nas alturas de Citáiron,

À sombra dos pinheiros, no meio das vinhas, lá de onde

Chega o rumor de Tebas e Ismenos, no país de Cadmos;

De lá vem e para lá aponta de volta o deus vindouro.
4


Venturosa Grécia! Morada de todos os Celestes!

É verdade então o que ouvimos em nossa juventude?

Salão de festa – por chão o mar, por mesa as montanhas –

Só para tal fim construído desde tempos remotos!

Mas onde os tronos, onde os templos, onde as taças repletas

De néctar? Onde os cânticos para o deleite dos deuses?

Onde, a brilhar, os oráculos de tão longínquo acerto?

Se Delfos dorme, onde soa a voz do célere, do grande

Destino? onde irrompe, cheio de venturas sempiternas,

A trovejar por sobre as vistas inesperadamente?

Pai Éter! O grito ia de boca em boca repetido

Mil vezes, pois não suportava ninguém viver a sós;

Repartido, tal bem alegra e, trocado com estranhos,

Faz-se júbilo, acorda o embotado poder da palavra.

Pai sereno! soa e ressoa, quão longe vá, o signo

Tão antigo, exato e criador, herdado dos maiores.

Surgem assim os Celestes, numa funda comoção;

Assim, desde as trevas, desce até os homens sua luz.
5


Chegam a princípio despercebidos; contra eles se erguem

Os filhos, a quem cega, por viva demais, a ventura.

O homem os teme; mesmo um semideus mal sabe dizer

Os nomes dos que dele se aproximam com dádivas.

Mas é grande o valor que lhe infundem, enchem-lhe o coração

De alegria; ignorando de que modo usar tantos bens,

Ele cria e esbanja e até crê tornar sagrado o profano

Que toca, numa bênção, com mão insensata e clemente.

Os Celestes o toleram quanto podem, mas enfim

Se mostram como são na verdade, e os homens se habituam

À ventura, à luz, e aos rostos dos deuses visíveis, deuses

Que, há tanto tempo nomeados por todos e por cada homem,

Enchem-lhe o peito mudo de satisfação gratuita,

Primeiros, únicos a satisfazer todo desejo.

Assim é o homem: quando um bem se apresenta e um deus lhe traz

As suas dádivas, não o reconhece nem o vê.

Tem antes de sofrer para dar nome ao que lhe é mais caro;

Aí sim, as palavras lhe virão como vêm as flores.
7


Mas, amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,

Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.

Infinita é sua ação ali e aos Celestes parece

Importar pouco a nossa vida, pelo muito que de nós poupam.

Pois nem sempre os pode conter um vaso frágil e só

De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.

A vida é depois sonhar com eles. Entretanto, o erro

É útil, tal como o sonho, e a aflição e a noite dão forças

Até crescerem heróis bastantes em berços de bronze,

De forte coração como os de outrora, iguais aos Celestes.

Hão de vir, trovejantes. Porém, parece-me, por vezes,

Bem melhor dormir do que viver assim sem companheiros.

O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer?

Não sei: e para que poetas num tempo de indigência?

Mas são, dizes, como os sacerdotes do deus das vinhas

Que, pela noite sagrada, iam de país em país.
8


Quando, em tempos que nos parecem remotos, ascenderam

Ao céu todos os que tornavam a vida venturosa;

Quando o Pai apartou seu semblante do mundo dos homens

E com fundadas razões o luto começou na terra;

Quando, celestial consolo, apareceu enfim um gênio

Que tranqüilo proclamou o término do dia e foi-se –

Deixou o coro celeste atrás de si, como sinal

De que estivera entre nós e voltaria, certos dons

Para que pudéssemos gozar humanamente como antes;

Mas o maior, a alegria de espírito, era demais

Para os homens: se só aos fortes, que ainda, ainda faltam, cabe

A alegria mais alta, resta ao menos certa gratidão.

O pão é fruto da terra, porém a luz o abençoa

E do deus trovejante provém a alegria do vinho.

Por isso pensamos nos Celestes, que outrora estiveram

Na terra e para cá voltarão quando chegar o tempo.

Por isso celebram os poetas também, em canto grave,

O antigo deus do vinho, a quem louvor não soa fútil.
9


Sim! dizem com razão que ele concilia o dia e a noite,

Move os astros céu acima céu abaixo eternamente,

Alegre o tempo todo, como a folhagem sempreverde

Dos pinhais que ama tanto, e a coroa de hera que escolheu.

Pois é o que permanece, o que traz o rastro dos deuses

Desaparecidos às trevas ínferas dos sem-deuses.

Vede: o que vaticinam os vates nos velhos cânticos

Dos filhos de Deus, cumpre-se em nós: o fruto das Hespérides!

Maravilhoso e preciso é o que nos homens se cumpre;

Crê que já o provou, mas de tantas coisas que acontecem,

Umas poucas nos tocam, sombras sem coração que somos

Até reconhecermos todos pertencer ao Pai Éter.

Entrementes, portador da tocha, eis que o filho do Altíssimo,

Desce, vindo da Síria, por entre as sombras cá de baixo.

O sábio bem-aventurado o vê; um sorriso da alma

Cativa lhe assoma aos lábios e uma luz lhe aquece os olhos.

Dorme e sonha tranqüilo o Titã nos braços da Terra

E o próprio Cérbero invejoso, após beber, adormece.
 
tradução do José Paulo Paes

Nenhum comentário:

Postar um comentário