quarta-feira, 30 de março de 2011

Mário de Sá Carneiro

Mário de Sá Carneiro


 "O Fixador de Instantes" do livro "Céu em Fogo":



(...)



Mas tive que lutar com a realidade demasiada e o excesso das coisas aprendidas.

Residindo largo tempo no solo admirável, eu aprendera alguns locais tão pormenorizadamente que amanhã, longe deles, não os poderia sentir – de tal forma nitidamente os reveria! E não os sentindo à força de os ver, eu não saberia estremecê-los. Por isso, assim como o pintor esfuma a sua tela para a tornar mais emotiva, mais sensível, também eu precisei esfumar a minha cidade, e fui percorrê-la em bairros que desconhecia, nas minhas horas de grande vibração – horas que, com o cenário, pararam, ficaram bem presas para mim, pois durante elas eu oscilei sensações intensas e me perdi em sonhos geniais que, nas minhas obras, mais tarde realizarei.

Bem fixado o instante, igualmente o panorama se deteve, mas esse panorama é-me vago porque nunca mais lá regressei. E pertence à grande cidade, logo, amanhã, eu posso recordá-lo sentindo-o. Não, vendo-o apenas.

Eis como emprestei ao total a bruma que uma obra destas precisa para ser eterna.



Enfim! Enfim! Desfolho rosas, esparzo aromas, tilinto oiro sobre as horas belas que existo, e assim as enlaço!

Riram-se os meus amigos quando a certa rapariguinha indecisa que eu nunca tive dei um colar de safiras e beijos... E que ela me apertara os dedos numa tarde de amor, e eu precisava guardar a luz dessa tarde, a sombra daqueles olhos mordorados, a frescura dos seus dedos – todo o aroma rutilante da hora que fugia...

Gente sem alma! Gente sem alma!

Tantas coisas da minha vida que ninguém compreende, tantas, são apenas utensílios da minha arte... Assim as tristes cartas da dançarina nua.



Ai, como eu me envaideço, como deliro das minhas estátuas!, como sou rico ao percorrê-las nas galerias infindáveis!... Porque eu tenho um passado, sim, eu tenho o passado!

Fixei a hora, guardei-a, posso tornar a vê-la.

Haverá triunfo mais alto?



(...)

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