terça-feira, 22 de março de 2011

CLARICE LISPECTOR

Eu vi dentro de um olho


Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara _o mal-estar já petrificado subia com esforço até sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crostra_ mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. (...) Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.





LISPECTOR, Clarice. Os desastres de Sofia. In: LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.21-22.

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