domingo, 3 de abril de 2011

HILDA HILST

I




Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia

Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível

Porque de barro e palha tem sido esta viagem

Que faço a sós comigo. Isenta de traçado

Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem

Hei de levar apenas a vertigem e a fé:

Para teu corpo de luz, dois fardos breves.

Deixarei palavras e cantigas. E movediças

Embaçadas vias de Ilusão.

Não cantei cotidianos. Só cantei a ti

Pássaro-Poesia

E a paisagem-limite: o fosso, o extremo

A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.

No Amanhã.



Hilda Hilst

In Amavisse (1992)
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Há um incêndio de angústia e de sons

Sobre os instentos. E no corpo da tarde

Se fez uma ferida. A mulher emergiu

Descompassada no de dentro da outra:

Uma mulher de mim nos incêndios do Nada.

Tinha o dorso de uns rios: quebradiço

E terroso. O peito carregado de ametistas.

Uma mulher me viu no roxo das ciladas:

Esculpindo de novo teu rosto no vazio.



Hilda Hilst

In Amavisse (1992 -------------
 
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II




Que canto há de cantar o que perdura?

A sombra, o sonho, o labirinto, o caos

A vertigem de ser, a asa, o grito.

Que mitos, meu amor, entre os lençóis:

O que tu pensas gozo é tão finito

E o que pensas amor é muito mais.



Como cobrir-te de pássaros e plumas

E ao mesmo tempo te dizer adeus

Porque imperfeito és carne e perecível



E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?

O toque sem tocar, o olhar sem ver

A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.

Como te amar, sem nunca merecer?



Hilda Hilst

In Da Noite (1992)
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VI




O que é a carne? O que é esse Isso

Que recobre o osso

Este novelo liso e convulso

Esta desordem de prazer e atrito

Este caos de dor dobre o pastoso.

A carne. Não sei este Isso.

O que é o osso? Este viço luzente

Desejoso de envoltório e terra.

Luzidio rosto.

Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.



Hilda Hilst

In Da Noite (1992)
 
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III




Colada à tua boca a minha desordem.

O meu vasto querer.

O incompossível se fazendo ordem.

Colada à tua boca, mas descomedida

Árdua

Construtor de ilusões examino-te sôfrega

Como se fosses morrer colado à minha boca.

Como se fosse nascer

E tu fosses o dia magnânimo

Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.



Hilda Hilst

In Do Desejo (1992)
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E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.



Hilda Hilst

In Do Desejo (1992) -----------------
 
V




O Nunca Mais não é verdade.

Há ilusões e assomos, há repentes

De perpetuar a Duração.

O Nunca Mais é só meia-verdade:

Como se visses a ave entre a folhagem

E ao mesmo tampo não

(E antevisses

Contentamento e morte na paisagem).



O Nunca Mais é de planícies e fendas.

É de abismos e arroios.

É de perpetuidade no que pensas efêmero

E breve e pequenino

No que sentes eterno.



Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.



Hilda Hilst

In Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995)

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