segunda-feira, 24 de maio de 2010

Murilo Mendes

Cantiga de Malazarte




“Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,

ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.

Não desprezo nada que tenha visto,

todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.

Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,

destelho as casas penduradas na terra,

tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.

Desloco as consciências,

a rua estala com os meus passos,

e ando nos quatro cantos da vida.

Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,

não posso amar ninguém porque sou o amor,

tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos

e a pedir desculpas ao mendigo.

Sou o espírito que assiste à Criação

e que bole em todas as almas que encontra.

Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.

Nada me fixa nos caminhos do mundo”.



Murilo Mendes

In ‘Poemas’ ( 1930

Poema Dialético



É preciso conhecer seu próprio abismo

E polir sempre o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:

Nossa existência é uma vasta expectação

Onde se tocam o princípio e o fim.

A terra terá que ser retalhada entre todos

E restituída em tempo à sua antiga harmonia.

Tudo marcha para a arquitetura perfeita:

A aurora é coletiva.



Murilo Mendes

SOMOS TODOS POETAS



Assisto em mim a um desdobrar de planos.

as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,

A luz desce das origens através dos tempos

E caminha desde já

Na frente dos meus sucessores.

Companheiro,

Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.

Sou todos e sou um,

Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,

Pelos gritos isolados que não entraram no coro.

Sou responsável pelas auroras que não se levantam

E pela angústia que cresce dia a dia.



Murilo Mendes

OSSOS DE BORBOLETA



"São lindos os ossos de borboleta. Bem sei que só existem em sentido figurado; ninharias que lhes deram o nome; um ceitil, um sexto de real ou do irreal, um milésimo do zero. Mas acredito teimosamente na existência dos ossos de borboleta."

"Bem sei que por exemplo os ossos de siba ou sépia são admiráveis; tanto assim que o poeta Montale batizou Ossi di seppia um dos seus melhores livros. Bem sei que o molusco de que é tipo a Sepia officinalis tornou-se precioso até na oficina do pintor."



"Mas os ossos de borboleta! Que finura, que delicadeza! Voam. "



Murilo Mendes

in Poliedro

Ainda não estamos habituados com o mundo

Nascer é muito comprido.





Murilo Mendes

[...] Penso que todos os homens possuem o germe da poesia. Nem todos, porém, sabem ou podem comunicar a poesia em forma persuasiva. A missão particular do poeta consiste em desvendar o território da poesia, nomeando as coisas criadas e imaginadas, instalando-as no espaço da linguagem, conferindo-lhes uma dimensão nova.

Além de recorrer ao seu tesouro pessoal, à sua vivência, o poeta se inspira no inconsciente coletivo, rico em símbolos, imagens e mitos. Da linguagem universal extrai a sua linguagem específica. A linguagem, ao mesmo tempo que informa o poeta, revela-lhe sua fisionomia pessoal.

Resumindo, pode-se dizer que a operação poética é baseada em linguagem, afetividade e engenho construtivo. O poeta escreverá, portanto, para manifestar suas constelações próprias.



Murilo Mendes

Um comentário:

  1. Belos textos! Aprecio, especialmente, os OSSOS DE BORBOLETA, do genial Murilo!!! Deixo abraços alados azuis.

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