quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

IVO LEDO

"O trapiche"




Queres que guarde para ti o orvalho.

Mas como posso guardar o que se dissolve
ao sol, como o vento, o amor e a morte?
Como guardar os sonhos que sonhamos
enquanto caminhamos acordados
no escuro e sem ninguém ao nosso lado?
E os sussurros de lábios encantados
no outro lado do muro? E a relva que se alastra
na pista do aeródromo? E a mancha aparecida
na casca da manga madura?
Como guardar a brisa sibilante
no convés do navio? E o vôo do pássaro?
E a barca abandonada que atravessa o rio
e pára sob a ponte?
Como e por que guardar um arreio enferrujado
e a cinza de coivara
e a chuva que chovia e o vento que ventava?
A nada guardaremos, nós que somos
o depósito de tudo, a arca e o trapiche.
O orvalho, que é eterno, se evapora
chegada a sua hora. E nossos sonhos
nos guardam fielmente nos seus túmulos.
In: IVO, Lêdo. "Crepúsculo Civil". Página 19. Rio de Janeiro: Record,1990.

Passar é ficar sempre'


Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.

Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.

Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.

Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.

Lêdo Ivo

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