quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Carlos Drummond de Andrade

'A hora do cansaço'


As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nós cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.

Carlos Drummond de Andrade

Poesia


Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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Inéditos - VIII
[14:19 | ]
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"Miragem"



para Olga Savary



Chegou, impressentida e silenciosa,
com uma saudade eslava nos cabelos
e um ritmo de crepúsculo ou de rosa.


Os olhos eram suaves, e eis que ao vê-los,
outra paisagem, fluida, na distância,
sugeria doçuras e desvelos.


No coração, agora já sem ânsia,
paira a serenidade comovida
que lembra os puros cânticos da infância.


Logo depois se foi, mas refletida
nesse espelho interior, onde as imagens
se libertam do tempo, além da vida,


Olenka permanece, entre miragens.


(Rio de Janeiro, 1955)



Carlos Drummond de Andrade (Inédito)

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A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.

O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.

Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós.

A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.


Extraído do livro "O amor natural", Editora Record – RJ, 1992, pág. 29.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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