sexta-feira, 22 de abril de 2011

Charles Baudelaire

EMBEBEDAI-VOS






É preciso estar-se, sempre, bêbado. Tudo está lá, eis a única questão. Para não sentir o fardo do tempo que parte vossos ombros e verga-vos para a terra, é preciso embebedar-vos sem tréguas.



Mas de que? De vinho, de poesia ou de virtude, a escolha é vossa. Mas embebedai-vos.



E se, às vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a grama verde de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, vós vos acordadardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que passa, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão: "É hora de embebedai-vos, embebedai-vos sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude: a escolha é vossa."





(Charles Baudelaire - do livro: Pequenos poemas em prosa - trad.: Gilson Maurity)

terça-feira, 5 de abril de 2011

Onestaldo de Pennafort

ARTE POÉTICA




Da janela de onde olha a paisagem lá fora,

a escutar o fluir da água que canta e chora,

por sob a ponte, sempre em mesmo diapasão,

como se o rio fosse a música do chão,

o poeta sonha...

Desce a sombra nas calçadas.

Alguém passa assobiando umas notas trinadas.

O ar amortece ...A brisa é terna como um beijo

nos olhos...E, ao sabor da brisa, sem desejo,

sem ânsias e sem pressa, erra o seu pensamento,

vadiamente, como um pássaro ao relento...

Pouco a pouco, porém, a doçura da tarde

que os contornos suaviza e que as folhas encarde,

e esse esparso langor da hora crepuscular

em que tudo parece estático, a cismar,

despertam na sua alma ignota melodia.

Memória... exaltação... delícia...nostalgia...

Silêncio. A natureza arfa e se exaure, lassa.

Fechar de asas e sons e ruídos em que passa

a eterna indagação do crepúsculo... E quando

no céu amplo e disperso

nasce a primeira estrela cintilando,

nasce o primeiro verso...







Onestaldo de Pennafort

Poesia (1987)

domingo, 3 de abril de 2011

HILDA HILST

I




Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia

Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível

Porque de barro e palha tem sido esta viagem

Que faço a sós comigo. Isenta de traçado

Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem

Hei de levar apenas a vertigem e a fé:

Para teu corpo de luz, dois fardos breves.

Deixarei palavras e cantigas. E movediças

Embaçadas vias de Ilusão.

Não cantei cotidianos. Só cantei a ti

Pássaro-Poesia

E a paisagem-limite: o fosso, o extremo

A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.

No Amanhã.



Hilda Hilst

In Amavisse (1992)
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Há um incêndio de angústia e de sons

Sobre os instentos. E no corpo da tarde

Se fez uma ferida. A mulher emergiu

Descompassada no de dentro da outra:

Uma mulher de mim nos incêndios do Nada.

Tinha o dorso de uns rios: quebradiço

E terroso. O peito carregado de ametistas.

Uma mulher me viu no roxo das ciladas:

Esculpindo de novo teu rosto no vazio.



Hilda Hilst

In Amavisse (1992 -------------
 
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II




Que canto há de cantar o que perdura?

A sombra, o sonho, o labirinto, o caos

A vertigem de ser, a asa, o grito.

Que mitos, meu amor, entre os lençóis:

O que tu pensas gozo é tão finito

E o que pensas amor é muito mais.



Como cobrir-te de pássaros e plumas

E ao mesmo tempo te dizer adeus

Porque imperfeito és carne e perecível



E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?

O toque sem tocar, o olhar sem ver

A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.

Como te amar, sem nunca merecer?



Hilda Hilst

In Da Noite (1992)
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VI




O que é a carne? O que é esse Isso

Que recobre o osso

Este novelo liso e convulso

Esta desordem de prazer e atrito

Este caos de dor dobre o pastoso.

A carne. Não sei este Isso.

O que é o osso? Este viço luzente

Desejoso de envoltório e terra.

Luzidio rosto.

Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.



Hilda Hilst

In Da Noite (1992)
 
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III




Colada à tua boca a minha desordem.

O meu vasto querer.

O incompossível se fazendo ordem.

Colada à tua boca, mas descomedida

Árdua

Construtor de ilusões examino-te sôfrega

Como se fosses morrer colado à minha boca.

Como se fosse nascer

E tu fosses o dia magnânimo

Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.



Hilda Hilst

In Do Desejo (1992)
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E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.



Hilda Hilst

In Do Desejo (1992) -----------------
 
V




O Nunca Mais não é verdade.

Há ilusões e assomos, há repentes

De perpetuar a Duração.

O Nunca Mais é só meia-verdade:

Como se visses a ave entre a folhagem

E ao mesmo tampo não

(E antevisses

Contentamento e morte na paisagem).



O Nunca Mais é de planícies e fendas.

É de abismos e arroios.

É de perpetuidade no que pensas efêmero

E breve e pequenino

No que sentes eterno.



Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.



Hilda Hilst

In Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995)

HILDA HILST

XII




Temendo desde agosto o fogo e o vento

Caminho junto às cercas, cuidadosa

Na tarde de queimadas, tarde cega.

Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.

E ali reencontro o louco:

- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida?

Por que não deixas o fogo onividente

Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder

Casando o Onisciente à tua vida?
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XX




De grossos muros, de folhas machucadas

É que caminham as gentes pelas ruas.

De dolorido sumo e de duras frentes

É que são feitas as caras. Ai, Tempo



Entardecido de sons que não compreendo

Olhares que se fazem bofetadas, passos

Cavados, fundos, vindos de um alto poço

De um sinistro Nada. E bocas tortuosas



Sem palavras.



E o que há de ser da minha boca de inventos

Neste entandercer. E o do ouro que sai

Da garganta dos loucos, o que há de ser?





Hilda Hilst

In Amavisse (1992