quarta-feira, 30 de março de 2011

Adriana Monteiro de Barros

As borboletas não são azuis nem o céu é cinzento.



Eu, gaivota que não tenho pouso certo,


Que rasgo o ar em busca de novos céus,


Que me arremesso contra oceanos em troca de alimento,


Sublimo as verdades absolutas,


Afirmo que a liberdade é invisível,


Só a chuva tem cheiro


Todo amor é um universo de sombras e arde!


Mas nem todo amor é vida que pulsa,


Nem toda vida que pulsa é vida


Mas toda vida é curta para ser pequena


E morna.






Adriana Monteiro de Barros

Ruy Espinheira Filho

O ROSTO DA CHUVA




Esse rosto na chuva

te olha.

É uma chuva longa, uma

de muitos anos e viagens

correndo por esse rosto.



Densa como sangue, chove.

No rosto, outros rostos

cintilam,

gotas esparsas.

Assim casas, cidades, nomes,

Animais,

marés do peito abismo.



Esse rosto na chuva

te reflete

com o que a vinda,

vida,

te doou e às vezes inscreveu

tão fundo que lá não desces.



Esse rosto

na chuva que circula

em tuas veias

te punge com mil irresgatáveis

e

áspero cresce

sob a pele suave do teu rosto.



Ruy Espinheira Filho

In ‘Julgado do Vento’ (1979)

Cecília Meireles

Eu sou essa pessoa a quem o vento chama


(Cecília Meireles)



Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,

A que não se recusa a esse final convite,

Em máquinas de adeus, sem tentação de volta.



Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza,

Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:

Já de horizontes libertada, mas sozinha.



Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,

Dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho?

Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.



Pelos mundos do vento, em meus cílios guardadas

Vão as medidas que separam os abraços,

Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:

“Agora és livre, se ainda recordas.”

Emily Dickinson

Demasiada Loucura é o Mais Divino Juízo




Demasiada Loucura é o mais divino Juízo -

Para um Olhar criterioso -

Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -

É a Maioria que

Nisto, como em Tudo, prevalece -

Consente - e és são -

Objecta - és perigoso de imediato -

E acorrentado -



Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"

Tradução de Nuno Júdice

Mário de Sá Carneiro

Mário de Sá Carneiro


 "O Fixador de Instantes" do livro "Céu em Fogo":



(...)



Mas tive que lutar com a realidade demasiada e o excesso das coisas aprendidas.

Residindo largo tempo no solo admirável, eu aprendera alguns locais tão pormenorizadamente que amanhã, longe deles, não os poderia sentir – de tal forma nitidamente os reveria! E não os sentindo à força de os ver, eu não saberia estremecê-los. Por isso, assim como o pintor esfuma a sua tela para a tornar mais emotiva, mais sensível, também eu precisei esfumar a minha cidade, e fui percorrê-la em bairros que desconhecia, nas minhas horas de grande vibração – horas que, com o cenário, pararam, ficaram bem presas para mim, pois durante elas eu oscilei sensações intensas e me perdi em sonhos geniais que, nas minhas obras, mais tarde realizarei.

Bem fixado o instante, igualmente o panorama se deteve, mas esse panorama é-me vago porque nunca mais lá regressei. E pertence à grande cidade, logo, amanhã, eu posso recordá-lo sentindo-o. Não, vendo-o apenas.

Eis como emprestei ao total a bruma que uma obra destas precisa para ser eterna.



Enfim! Enfim! Desfolho rosas, esparzo aromas, tilinto oiro sobre as horas belas que existo, e assim as enlaço!

Riram-se os meus amigos quando a certa rapariguinha indecisa que eu nunca tive dei um colar de safiras e beijos... E que ela me apertara os dedos numa tarde de amor, e eu precisava guardar a luz dessa tarde, a sombra daqueles olhos mordorados, a frescura dos seus dedos – todo o aroma rutilante da hora que fugia...

Gente sem alma! Gente sem alma!

Tantas coisas da minha vida que ninguém compreende, tantas, são apenas utensílios da minha arte... Assim as tristes cartas da dançarina nua.



Ai, como eu me envaideço, como deliro das minhas estátuas!, como sou rico ao percorrê-las nas galerias infindáveis!... Porque eu tenho um passado, sim, eu tenho o passado!

Fixei a hora, guardei-a, posso tornar a vê-la.

Haverá triunfo mais alto?



(...)

Mário de Sá-Carneiro

QUASE


Mário de Sá-Carneiro



Um pouco mais de sol — eu era brasa.

Um pouco mais de azul — eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...



Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído

Num baixo mar enganador d'espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho — ó dor! — quase vivido...



Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim — quase a expansão...

Mas na minh'alma tudo se derrama...

Entanto nada foi só ilusão!



De tudo houve um começo... e tudo errou...

— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou...



Momentos de alma que desbaratei...

Templos aonde nunca pus um altar...

Rios que perdi sem os levar ao mar...

Ânsias que foram mas que não fixei...



Se me vagueio, encontro só indícios...

Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios...



Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi..

terça-feira, 29 de março de 2011

JOÃO GILBERTO NOLL

A cada quarteirão ele vibrava mais. “Sem metas”, como apregoava seu professor de estética, na época em que esse terreno suscitava sérias digressões. A cada quarteirão conhecia novo ânimo. Fôlego para mil quarteirões, se aquela praia os possuísse. Vivia uma estrada solitária. “Para descansar”, repetia. Encontraria um jeito de não mais sair dali. “Fazendo o quê?”, uma voz inclusa perguntava. Ele parou. Olhou as mãos, o corpo. “Sei sim, que dessa pele tão cedo não sairei!” Parecia um hino súbito. Divertiu-se, encenou uma risada. Voltou a correr. E não foi mais visto.




NOLL, João Gilberto. Mínimos, múltiplos, comuns. São Paulo: Francis, 2003. p.262.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Francisco Miguel de Moura

TEMPO EXISTE






Existe um tempo que sequer sentimos,

existe um tempo que sequer pensou-se,

existe um tempo que o tempo não trouxe,

existe um tempo que sequer medimos.



Existe mais: um tempo em que sorrimos,

diferente do tempo em que chorou-se,

e um tempo neutro: nem amaro ou doce.

Tempos alheios, nem sequer são primos!



Existe um tempo pior do que ruim

e um tempo amado e um tempo de canção,

existe um tempo de pensar que é o fim.



Tempo é o que bate em nosso coração:

um tempo acumulado em tempo-sim,

e um tempo esvaziado em tempo-não.



Francisco Miguel de Moura

quinta-feira, 24 de março de 2011

Rainer Maria Rilke

DANÇARINA ESPANHOLA






Como um fósforo a arder antes que cresça

a flama, distendendo em raios brancos

suas línguas de luz, assim começa

e se alastra ao redor, ágil e ardente,

a dança em arco aos trêmulos arrancos.



E logo ela é só flama, inteiramente.



Com um olhar põe fogo nos cabelos

e com arte sutil dos tornozelos

incendeia também os seus vestidos

de onde, serpentes doidas, a rompê-los,

saltam os braços nus com estalidos.



Então como se fosse um feixe aceso,

colhe o fogo num gesto de desprezo,

atira-o bruscamente no tablado

e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,

a sustentar ainda a chama viva.

Mas ela, do alto, num leve sorriso

de saudação, erguendo a fronte altiva,

pisa-o com seu pequeno pé preciso.





A PANTERA



(No Jardin des Plantes, Paris)



De tanto olhar as grades seu olhar

esmoreceu e nada mais aferra.

Como se houvesse só grades na terra:

grades, apenas grades para olhar.



A onda andante e flexível do seu vulto

em círculos concêntricos decresce,

dança de força em torno a um ponto oculto

no qual um grande impulso se arrefece.



De vez em quando o fecho da pupila

se abre em silêncio. Uma imagem, então,

na tensa paz dos músculos se instila

para morrer no coração.





O POETA



Já te despedes de mim, Hora.

Teu golpe de asa é o meu açoite.

Só: da boca o que faço agora?

Que faço do dia, da noite?



Sem paz, sem amor, sem teto,

caminho pela vida afora.

Tudo aquilo em que ponho afeto

fica mais rico e me devora.

Rainer Maria Rilke

PRIMEIRA ELEGIA




Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens

Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse

Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria

Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é

Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,

E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha

Destruir-nos. Cada anjo é terrível.

E assim me contenho pois, e reprimo o apelo



De obscuro soluço. Ah! A quem podemos

Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,

E os animais sagazes logo percebem

Que não estamos muito seguros

No mundo interpretado. Resta-nos talvez

Alguma árvore na encosta que diariamente

Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem

E a mimada fidelidade de um hábito,

Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.

Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços

Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,

Levemente decepcionante, que para o solitário coração

Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?

Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.

Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio

Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros

Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.



Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas

Esperavam que tu as percebesses. Do passado

Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou

Ao passares sob uma janela aberta,

Um violino se entregava. Tudo isso era missão.

Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre

Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse

A bem amada? (onde queres abrigá-la

Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram

E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)

Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito

Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.

Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu

Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas. Começa

Sempre de novo o louvor jamais acessível;

Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi

Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.

As amantes, porém, a natureza exausta as toma

Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.

Já pensaste pois em Gaspara Stampa

O bastante para que alguma jovem,

A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo

Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?

Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar

Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,

Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos Como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?

Pois parada não há em /parte alguma.



Vozes, vozes.Escuta, coração como outrora somente

os santos escutavam: até que o gigantesco apelo

levantava-os do chão; mas eles continuavam ajoelhados,

inabaláveis, sem desviarem a atenção:

eles assim escutavam. Não que tu pudesses suportar

a voz de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,

a incessante mensagem que nasce do silêncio.

Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.

Onde quer que penetraste, nas igrejas

De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?

Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti

Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.

Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar

A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco

O puro movimento de seus espíritos.



Certo, é estranho não habitar mais terra,

Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,

Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas

Não dar sentido do futuro humano;

O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo

Não ser mais, e até o próprio nome

Deixar de lado como um brinquedo quebrado.

Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,

Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto

No espaço. E estar morto é penoso

E cheio de recuperações, até que lentamente se divise

Um pouco da eternidade. - Mas os vivos

Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.

Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes

Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna

Arrebata através de ambos os reinos todas as idades

Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.



Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,

Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno

suavemente se deixa, ao crescer.Mas nós que de tão grandes

mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes

o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?

É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,

A primeira música ousando atravessou o árido letargo,

Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente

escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou

naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?





Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu

publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos

de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o

antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.

FRIEDRICH HOELDERLIN

Hölderlin e Capra


"Cada ponto em sua desagregação e reprodução se acha infinitamente entrelaçado com o sentimento total da desagragação e reprodução de forma que tudo se permeia, se toca e se aproxima infinitamente , tanto na dor como na alegria, na luta e na paz, no movimento e no repouso, na configuração e desconfiguração".



Hölderlin. Reflexões. Pág. 75 e 76.

FRIEDRICH HOELDERLIN

1


PÃO E VINHO (Friedrich Hoelderlin – 1770-1843)



1

Dorme a cidade à volta; cala-se a rua iluminada

E, ornados de tochas, partem os carros rumorosos.

Fartos do dia intenso, os homens vão-se repousar em casa

E uma cabeça ajuizada pondera lucros e perdas

No conforto do seu lar; vazio de racimos, de flores,

De coisas feitas a mão, jaz tranqüilo o operoso mercado.

Mas sons de músicas soam longe, nos jardins, por onde

Talvez toque um enamorado ou lembre um solitário

A mocidade, os amigos distantes; ouvem-se as fontes

Correndo, sempre frescas, junto aos canteiros perfumosos.

Numa surda alegria, repicam sinos ao crepúsculo

E, atento ao curso das horas, um vigia as vai gritando.

Vem um sopro agitar o topo das árvores do bosque

E também, vede! Silhueta de nossa Terra, a Lua

Secretamente surge; desdobra-se a noite inspiradora,

Cheia de estrelas e muito pouco preocupada conosco.

Cintilante, surpreendente, forasteira em meio aos homens,

Ela se eleva, melancolia e pompa, sobre os montes.
2


2

Maravilhosa é a graça da Altíssima e ninguém sabe

Donde provém ela nem o que dela lhe caberá.

Eis como ela move o mundo e a alma esperançosa dos homens.

Sábio algum compreende bem o que ela prepara porque

Assim o determina o deus supremo, que muito te ama;

Por isso, em vez dela preferes o dia circunspecto.

Mas de quando em quando o olhar límpido ama também a sombra

E busca por gosto, mais do que por necessidade, o sono;

O homem fidedigno, por gosto também, perscruta a noite.

Sim, não quadra mal oferecer-lhe coroas e cânticos

Porque a noite está consagrada aos insensatos e aos mortos,

Mas ela própria mantém sempre e sempre o espírito isento.

Todavia, cumpre-lhe ainda, para que, na hora hesitante,

Possamos em meio à treva encontrar algo palpável,

Propiciar-nos o esquecimento, a sagrada embriaguez, dar-nos

A palavra transbordante que, como os enamorados,

Seja insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa

E a sagrada memória em vigília até o fim da noite.
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Em vão calamos o coração no peito, o sentimento

Em vão o contemos, nós, mestres e aprendizes, pois quem

Iria impedi-lo, iria proibir nossa alegria?

O fogo divino também nos incita, dia e noite,

A ir adiante. Vem, pois, contemplar o aberto, buscar

Um bem que seja o nosso próprio, por distante que esteja!

Uma coisa é segura: por volta do meio-dia ou perto

Da meia-noite, existe sempre uma medida comum

Para todos, mas há para cada um bem particular.

A busca-lo vai cada um e chega até onde consegue.

Que da troça troce a alegre insensatez quando apossar-se

Repentinamente dos poetas na noite sagrada.

Vem para o Istmo, pois! Lá onde o mar aberto canta ao pé

Do Parnaso, e o brilho da neve envolve os rochedos délficos.

Lá no país do Olimpo, lá nas alturas de Citáiron,

À sombra dos pinheiros, no meio das vinhas, lá de onde

Chega o rumor de Tebas e Ismenos, no país de Cadmos;

De lá vem e para lá aponta de volta o deus vindouro.
4


Venturosa Grécia! Morada de todos os Celestes!

É verdade então o que ouvimos em nossa juventude?

Salão de festa – por chão o mar, por mesa as montanhas –

Só para tal fim construído desde tempos remotos!

Mas onde os tronos, onde os templos, onde as taças repletas

De néctar? Onde os cânticos para o deleite dos deuses?

Onde, a brilhar, os oráculos de tão longínquo acerto?

Se Delfos dorme, onde soa a voz do célere, do grande

Destino? onde irrompe, cheio de venturas sempiternas,

A trovejar por sobre as vistas inesperadamente?

Pai Éter! O grito ia de boca em boca repetido

Mil vezes, pois não suportava ninguém viver a sós;

Repartido, tal bem alegra e, trocado com estranhos,

Faz-se júbilo, acorda o embotado poder da palavra.

Pai sereno! soa e ressoa, quão longe vá, o signo

Tão antigo, exato e criador, herdado dos maiores.

Surgem assim os Celestes, numa funda comoção;

Assim, desde as trevas, desce até os homens sua luz.
5


Chegam a princípio despercebidos; contra eles se erguem

Os filhos, a quem cega, por viva demais, a ventura.

O homem os teme; mesmo um semideus mal sabe dizer

Os nomes dos que dele se aproximam com dádivas.

Mas é grande o valor que lhe infundem, enchem-lhe o coração

De alegria; ignorando de que modo usar tantos bens,

Ele cria e esbanja e até crê tornar sagrado o profano

Que toca, numa bênção, com mão insensata e clemente.

Os Celestes o toleram quanto podem, mas enfim

Se mostram como são na verdade, e os homens se habituam

À ventura, à luz, e aos rostos dos deuses visíveis, deuses

Que, há tanto tempo nomeados por todos e por cada homem,

Enchem-lhe o peito mudo de satisfação gratuita,

Primeiros, únicos a satisfazer todo desejo.

Assim é o homem: quando um bem se apresenta e um deus lhe traz

As suas dádivas, não o reconhece nem o vê.

Tem antes de sofrer para dar nome ao que lhe é mais caro;

Aí sim, as palavras lhe virão como vêm as flores.
7


Mas, amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,

Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.

Infinita é sua ação ali e aos Celestes parece

Importar pouco a nossa vida, pelo muito que de nós poupam.

Pois nem sempre os pode conter um vaso frágil e só

De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.

A vida é depois sonhar com eles. Entretanto, o erro

É útil, tal como o sonho, e a aflição e a noite dão forças

Até crescerem heróis bastantes em berços de bronze,

De forte coração como os de outrora, iguais aos Celestes.

Hão de vir, trovejantes. Porém, parece-me, por vezes,

Bem melhor dormir do que viver assim sem companheiros.

O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer?

Não sei: e para que poetas num tempo de indigência?

Mas são, dizes, como os sacerdotes do deus das vinhas

Que, pela noite sagrada, iam de país em país.
8


Quando, em tempos que nos parecem remotos, ascenderam

Ao céu todos os que tornavam a vida venturosa;

Quando o Pai apartou seu semblante do mundo dos homens

E com fundadas razões o luto começou na terra;

Quando, celestial consolo, apareceu enfim um gênio

Que tranqüilo proclamou o término do dia e foi-se –

Deixou o coro celeste atrás de si, como sinal

De que estivera entre nós e voltaria, certos dons

Para que pudéssemos gozar humanamente como antes;

Mas o maior, a alegria de espírito, era demais

Para os homens: se só aos fortes, que ainda, ainda faltam, cabe

A alegria mais alta, resta ao menos certa gratidão.

O pão é fruto da terra, porém a luz o abençoa

E do deus trovejante provém a alegria do vinho.

Por isso pensamos nos Celestes, que outrora estiveram

Na terra e para cá voltarão quando chegar o tempo.

Por isso celebram os poetas também, em canto grave,

O antigo deus do vinho, a quem louvor não soa fútil.
9


Sim! dizem com razão que ele concilia o dia e a noite,

Move os astros céu acima céu abaixo eternamente,

Alegre o tempo todo, como a folhagem sempreverde

Dos pinhais que ama tanto, e a coroa de hera que escolheu.

Pois é o que permanece, o que traz o rastro dos deuses

Desaparecidos às trevas ínferas dos sem-deuses.

Vede: o que vaticinam os vates nos velhos cânticos

Dos filhos de Deus, cumpre-se em nós: o fruto das Hespérides!

Maravilhoso e preciso é o que nos homens se cumpre;

Crê que já o provou, mas de tantas coisas que acontecem,

Umas poucas nos tocam, sombras sem coração que somos

Até reconhecermos todos pertencer ao Pai Éter.

Entrementes, portador da tocha, eis que o filho do Altíssimo,

Desce, vindo da Síria, por entre as sombras cá de baixo.

O sábio bem-aventurado o vê; um sorriso da alma

Cativa lhe assoma aos lábios e uma luz lhe aquece os olhos.

Dorme e sonha tranqüilo o Titã nos braços da Terra

E o próprio Cérbero invejoso, após beber, adormece.
 
tradução do José Paulo Paes

FRIEDRICH HOELDERLIN

Sonnenuntergang




Wo bist du? trunken dämmert die Seele mir

Von aller deiner Wonne; denn eben ist's,

Dass ich gelauscht, wie, goldner Töne

Voll, der entzückende Sonnenjüngling



Sein Abendlied auf himmlischer Leier spielt';

Es tönten rings die Wälder und Hügel nach.

Doch fern ist er zu frommen Völkern,

Die ihn noch ehren, hinweggegangen.





Por do Sol (trad. Manuel Bandeira)



Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda

De tôdas as tuas delícias; um momento

Escutei o sol, amorável adolescente,

Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.



Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;

Êle no entanto já ia longe, levando a luz

A gentes mais devotas.

Que o honram ainda.

terça-feira, 22 de março de 2011

RENATO TAPADO

Matizes




pelas manhãs desperto

as fontes de uma

cor

ação

tingindo o dia de anseios



pelas tardes enfrento

o véu cigano do olhar

em ruas humanas e

claras



pelas noites guarneço

as forças do sonho

sonar

de novos matizes de

ser



RENATO TAPADO

Álvaro Ribeiro

[...]




Ler um livro é difícil; ler até ao ponto, ou até à ponta, em que se passa das afirmações comprovadas para as verdades ocultas. Ler é pensar, ou repensar, o que o autor escreveu. Faz-se mister, para isso, ler com o auxílio de um questionário, registar no manuscrito a distinção exacta entre as questões insolutas e os problemas resolvidos; mas como só um ou outro estudioso se dispõe a tal interrogatório, para avaliar o que conseguiu saber, prevalece a discussão superficial dos argumentos que exemplarmente emergem aqui ou além, e a crítica literária dá por julgado um livro qualquer ao fim de uma rápida e fácil leitura.



O escritor desanima ao verificar que o seu pensamento corre minorado ou adulterado nas vozes anónimas que formam a opinião pública. Nenhuma escola, nenhum partido, nenhuma seita manifestará benevolência para com o homem extravagante que pensa de modo diferente dos outros, nem quererá atraí-lo para o seu grémio. Esta verdade reflecte-se no conhecido provérbio: O saber não ocupa lugar. De aí a tendência, para negar justiça àquele que for sincero no falar e no escrever. A liberdade de pensamento é assim diariamente limitada pela crítica moral, política e religiosa, num processo que só terminará pelo nivelamento final das inteligências.



Diz-se que a história fará justiça, mas a lição da história não produz efeito de reconforto sentimental. Os mesmos erros perduram, depois de reconhecidos, e reproduzem-se por uma necessidade que a vontade humana não consegue travar. Corrigir o erro seria, para muitos estudiosos, regressar ao passado e revogar o presente; corrigir o erro seria, para outros, proceder a um desmentido; preferem todos avançar sempre para um futuro imaginado, levados talvez por inconscientes motivos de opção.



Esperam aqueles que não agem. Esperando assimilam doutrinas que os verdadeiros e os falsos profetas vão propagando de geração em geração. Transferir o messianismo é a lei mental da cultura portuguesa.



Álvaro Ribeiro

Ferreira Gullar

Infinito Silêncio






houve

(há)

um enorme silêncio

anterior ao nascimento das estrelas



antes da luz



a matéria da matéria



de onde tudo vem incessante e onde

tudo se apaga

eternamente



esse silêncio

grita sob nossa vida

e de ponta a ponta

a atravessa

estridente





Ferreira Gullar

Homero Frei

A solidão






(Fuga que Deus repete sempre

Dos olhos do meu caminho).



Na superfície desse mar

Com sede

Uma cigarra

Em asas



(Tão maciças...).



Eu heraldizo

O vôo!





Homero Frei

In: Lado Alado

Ferreira Gullar

Barulho




Todo poema é feito de ar

apenas:

a mão do poeta

não rasga a madeira

não fere

o metal

a pedra

não tinge de azul

os dedos

quando escreve manhã

ou brisa

ou blusa

de mulher.

O poema

é sem matéria palpável

tudo

o que há nele

é barulho

quando rumoreja

ao sopro da leitura.



Ferreira Gullar

Margarida Vale de Gato

Condições mínimas






Esta sarça é interdita a matilhas;

há que mudar a pele para comer

o fogo. Não que eu faça render

qualquer talento, ou tenha em vasilhas



semi-intactas ilustres maravilhas:

uma lista de coisas a fazer,

solidão, pedra de isqueiro, um revólver,

e um aparelho já com pouca pilha



e que só uso eu; a nós vontade

basta – e alguma luz: pede-se intensa,

mas sem que obste o brilho à entrega cega,



aceitas? compreendes? aguentas?



no nervo negro desta densidade

penetra só sentindo que sustentas

e me conténs quando eu me desintegro.







- Margarida Vale de Gato

in Relâmpago n.º26, Fundação Luís Miguel Nava

PEDRO PAIXÃO

PEDRO PAIXÃO


Não se sabe como acontece, nem quando.

Digo o desejo, que tudo arrasta, tudo envolve num aperto que asfixia.

A vontade de anular todo o intervalo entre as coisas no ardor dos corpos, no misturar das línguas(...)



SEM FÔLEGO ASFIXIA



PEDRO PAIXÃO

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CONFISSÃO



Quando passo ao de leve pela minha vida tudo ganha sentido. Mal paro, tropeço. Não posso parar. Bom é este fim de tarde doce e azul sem fundo que resplendece no ar. Tudo se torna suave e sei que sou parte inteira deste universo que, a esta hora, se mostra assim.



Queres saber onde estou? Estou no lugar onde qualquer pessoa que foi amada se encontra. No mexer, no sussurrar, na entrega, no incansável prazer, na alma a dois. Lindo é o meu amor nómada que não pára de fugir de paisagem em paisagem e me vem visitar sempre que o não espero. Para sentir bater mais forte o meu coração que ele envolve como uma serpente. E o meu sexo nos seus dentes.



Vem ter comigo que eu não espero mais.

É urgente elevar a pessoa à posição do espanto


Ando cada vez mais intrigado com o lugar para onde vão as coisas que vivemos. Deve por certo haver algures algum registo, um filme detalhado. Que isto não é só isto, senão bastava-se. O meu pai, por exemplo, continua a viver em mim. O que mostra bem a imortalidade das almas. O que eu não percebi talvez fosse para não ser percebido. O que vivi talvez fosse para não ter sido vivido. O que matei levo-o comigo fechado dentro de um saco. Sem poder ter a certeza. Se a tivesse dava-a de bom gosto a quem ma pedisse. Eu não nasci assim louco. Eu lentamente adoeci.



É urgente elevar a pessoa à posição do espanto. É daí que se abre o mundo. Qualquer coisa possui em si o mistério de tudo e a nossa distância vai daqui para ali, e volta. Há uma frase por escrever da qual esqueci as palavras e a gramática. Uma frase que junte coisas separadas, as nuvens e as suas sombras, animais fabulosos a sensíveis plantas, breves recados a fatais desenlaces. Uma frase é um laço apertado por um verbo. Eu conjugo verbos como quem se encontra diante de um precipício. É a morte por todo o lado espelhada que me faz escrever a frase. Entretanto deparo diante de mim com uma parede falsa. Os meus olhos escondem tudo o que descobrem por detrás dela. Uma parede não basta para fazer uma casa. Uma casa é uma concha. Uma concha é uma casa. Uma concha abre-se como uma porta. Uma porta que conduz de uma prisão a outra. Há uma prisão inexpugnável. Eu nunca serei tu. Deve ser esta a frase que pedia para ser escrita aguardando pacientemente. Mas quem saberá a verdade se o que nos aproxima é o que nos mantém afastados? Em primeiro lugar o geométrico espaço, em segundo o tempo que nunca se atrasa. É assim, sempre assim. Prosseguimos de segredo em segredo as mãos atadas à cabeça. Foi sempre assim estar aqui, nesta existência extrema.
Quase, é uma palavra notável. Todas as pessoas deviam ter por nome próprio quase. Eu sou quase, tu és quase, ele é quase, nós somos quase. Quase qualquer coisa que não chega a ser quase. Uma equação quase perfeita. Um número quase redondo que só existe dentro das nossas cabeças ligadas por fios primorosos. Fios de aço que amarram a loucura e a mantêm obediente. Não pretendas ser mais. As lágrimas que te escorrem pela cara desenham traços de temperatura variável. Continuam a surgir frases por escrever, amores inacabados. O amor é sequioso como uma planta. O melhor é a água. Não há outra maneira. A felicidade é coisa que acontece tarde. Da qual só se tem notícia depois de ter sido. Quando alguém clama: sou feliz, está a preparar-se para a desgraça. Imensas são as coisas que só existem no tempo passado. Não há vagas, quer no inferno, quer no paraíso. Suceder já quer dizer sucedido, porque triunfar é um verbo a morrer. Há em mim qualquer um que tem saudades de si. Saudades imperiosas, bruscas, inevitáveis. Continuo a ignorar para onde foi o que fui, em que casas acordam as pessoas que amei. Dói quase. Assim, sempre assim. Uma espécie de distância que não pode ser percorrida.




PEDRO PAIXÃO

LUIZ DUTRA

LUIZ DUTRA


Navega meu olho,

no olhar de alguém.

Enquanto cego,

tateando no ontem,

buscando no hoje encontrar o amanhã,

a manhã se faz negra,

a tarde não chega

e minha cara esbarra nos muros das tuas palavras...

Os pensamentos tateiam,

o nariz alcança teu perfume,

e louco de tanto ciúme,

minhas pernas apressam a caminhada...

Por fim nada encontro,

e desencontrado o buscado,

arranco de dentro de mim

dois sonhos recém formados e os coloco a substituir meus olhos

e durmo tranquilo enxergando nós dois rodopiando no imenso salão de esquecer jamais...

Efigênia Coutinho

CANTO ESTRELAR...




Tem um sonho que canta o coração,

E vai beijando a terra, mar e o Luar

E vai clamando sua inspiração fora

Exultando dentro como um vulcão ...



Que ansiedade lhe agita? Murmúrios!

Que palavras confidenciam estes lábios,

A gemer beijos de amor com estrelas....

Tudo está além, em céus mais azuis...



Ergue teus braços ao ar, haveis de sentir

Essas aspirações, nas dobras do coração!

Longa,cálida, assim fala na voz do Luar

Entre feixes de luzes, prata e púrpura...



São mundos Novos, em céu celeste

Os astros sorrindo nas esferas...

Dos sonhos que o Ideal encerras!



Efigênia Coutinho

José Carlos Soares

Ainda não tem nome


mas há-de vir

decerto, o nome



atrás da fome

do que não está

por perto. E há-de ser aflita



a rosa nas traseiras,

um chão de vespas dentro

e uma noite inteira.



- José Carlos Soares

in Chão de Vespas, edição do autor

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Se estiver aí, de mãos atadas

ao tempo, não me queiras



encontrar. Eu sei-te

chorando as minhas lágrimas, cuspindo

os estourados versos do instante. Palavras



por abrir e nenhum bem, guardados

ossos de ninguém.





- José Carlos Soares

in Bátega, edição do autor

Merleau-Ponty

Merleau-Ponty


“ Para alcançar a totalidade é preciso unir visões parciais do olhar,

Unificar o que os olhos dispersam na natureza” Merleau-Ponty





" O sensível não éfeito somente de coisas.É feito também de tudo o que nelas se

desenha,mesmo no vazio dos intervalos,tudo que nelas deixa vestígio, tudo que nelas

se figura,mesmoa título de desvio e como uma certa ausência."Merleau-Ponty





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Affonso Romano de Sant'Anna

'Crepusculando'






É inenarrável esse crepúsculo

em mim se desmaiando

essas cigarras acima do ruído urbano

essas flores no terraço cúmplices



me olhando.

É inenarrável esse céu

esse dia

em mim se desmanchando.





Ergo um brinde à luz

e sigo

crepusculando.





Affonso Romano de Sant'Anna

NIETZSCHE

... para aprender a apreciar uma música é preciso saber percebê-la,


delimitá-la, em sua própria expressão;

depois, é necessário esforço e boa vontade para suportá-la,

a despeito da sua estranheza...

ter paciência e ternura pelo que ela tem de singular;

chega, enfim, o momento em que nos habituamos a ela,

em que sentimos que teríamos saudade dela se ela nos faltasse...

Mas não é só com a música que isso nos acontece:

é justamente dessa maneira que aprendemos a amar todos os objetos que amamos.

Acabamos sendo compensados pela nossa boa vontade, paciência,

ternura pela estranheza, quando esta, pouco a pouco,

se desvela e vem oferecer-se a nós como uma nova beleza -

é essa a gratidão pela nossa hospitalidade.

É só desta forma que aprendemos a amar.

Também se deve aprender o amor!

(NIETZSCHE

JOSÉ NEWTON ALVES DE SOUSA

Se é a poesia, mais do que um impulso vocacional, uma capacidade que luta por realizar-se expressionalmente, refletindo ora o sujeito, ora o objeto, ou a ação, compreende-se que, antes de tomar forma externa, lírica, épica, satírica ou dramática, já é poesia, mas poesia em procura, poesia transitiva em relação a uma forma, buscada, que será, depois, re-buscada, entendendo-se êste último têrmo, não só no sentido de nova procura, mas também no de aprimoramento formal.




Antes de alguém parir seus poemas, já os viveu e reviveu, já lhes comunicou marca e pessoalidade inconfundíveis, de tal maneira que ninguém mais no mundo será capaz de os reviver e os recriar na mesma medida, no mesmo grau afetivo e na mesma plenitude do verdadeiro autor.



Essa pessoalidade essencial é que faz legítimo o poema, tornando-o irreproduzível, o que não significa inimitável, e único, o que não quer dizer não passível de semelhança com outro.



A poesia, em estado inicial, isto é, a poesia latente ainda, com relação aos outros, mas atualizada, com relação ao autor, já se denuncia pela vida, pelo gesto, pelo ser existencial do poeta, antes que êste a exprima em versos.



O tempo do nascimento do poema nem sempre coincide com o de sua concepção. Nem todo poeta tem pressa de revelar aos outros o que já é síntese de beleza e sofrimento em sua alma. Há, entretanto, uma poesia como que impulsiva, que se não contém pacientemente dentro, mas força uma saída, rompe a película do repouso, para ser corpo exterior atuante.



[…]



JOSÉ NEWTON ALVES DE SOUSA

(excerto inicial da conferência Considerações sôbre a Poesia de António Gedeão, Centro de Estudos Portugueses, da Faculdade de Filosofia do Crato, 1969)

NIETZSCHE

NIETZSCHE

Quem quer aprender a voar, precisa primeiro aprender a ficar de pé e a andar e a subir e dançar: a arte de voar não se aprende voando!




Aquele que ensinar os homens a voar afastará todos os limites, batizará a terra de novo como A Leve.



Quem quer se tornar leve e se transformar em pássaro deve se amar

[O homem é uma corda estendida entre a besta e o Super Homem - uma corda sobre o abismo.

É perigoso passar de um lado ao outro, perigoso ficar no caminho, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.

O que há de grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é que ele é uma passagem e uma queda.

Por trás dos teus pensamentos e teus sentimentos, irmão, há um soberano possante e um sábio desconhecido. Ele mora no teu corpo, é teu corpo.

Há mais razão no teu corpo que na tua melhor sabedoria. Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.

E mesmo eu, que estou voltado para a vida, acho que as borboletas, as bolhas de sabão e o que se assemelha a elas entre os homens são o que melhor conhece a felicidade

(...)Nietzche, Assim Falava Zaratustra

NIETZSCHE

Folguedo, Manhã E Vingança


Friedrich Wilhelm Nietzsche

Folguedo, Manhã E Vingança



29



Egoísmo Estelar



Se, similmente a tonel que rola,



eu girasse sem cessar em torno de mim,



como deixaria de arder?



A correr empós o sol ardente?





62



Ecce Homo



Sei de onde venho!



Insatisfeito como labareda



ardo para me consumir.



O que toco torna-se luz,



Carvão quando abandono:



sou, com certeza, labareda.

Carlos Drummond de Andrade

Consideração do poema




Não rimarei a palavra sono

com a incorrespondente palavra outono.

Rimarei com a palavra carne

ou qualquer outra, que todas me convêm.

As palavras não nascem amarradas,

elas saltam, se beijam, se dissolvem,

no céu livre por vezes um desenho,

são puras, largas, autênticas, indevassáveis.



Uma pedra no meio do caminho

ou apenas um rastro, não importa.

Estes poetas são meus. De todo o orgulho,

de toda a precisão se incorporam

ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius

sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.

Que Neruda me dê sua gravata

chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.

São todos meus irmãos, não são jornais

nem deslizar de lancha entre camélias:

é toda a minha vida que joguei.



Estes poemas são meus. É minha terra

e é ainda mais do que ela. É qualquer homem

ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna

em qualquer estalagem, se ainda as há.

– Há mortos? há mercados? há doenças?

É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,

por que falsa mesquinhez me rasgaria?

Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.

O beijo ainda é um sinal, perdido embora,

da ausência de comércio,

boiando em tempos sujos.



Poeta do finito e da matéria,

cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,

boca tão seca, mas ardor tão casto.

Dar tudo pela presença dos longínquos,

sentir que há ecos, poucos, mas cristal,

não rocha apenas, peixes circulando

sob o navio que leva esta mensagem,

e aves de bico longo conferindo

sua derrota, e dois ou três faróis,

últimos! esperança do mar negro.

Essa viagem é mortal, e começa-la.

Saber que há tudo. E mover-se em meio

a milhões e milhões de formas raras,

secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta


ouvido rente ao chão. Mas é tão alto

que as pedras o absorvem. Está na mesa

aberta em livros, cartas e remédios.

Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,

o uniforme de colégio se transformam,

são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto

ou recusar-se ao grande? Os temas passam,

eu sei que passarão, mas tu resistes,

e cresces como fogo, como casa,

como orvalho entre dedos,

na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,

e te desejo e te perco, estou completo,

me destino, me faço tão sublime,

tão natural e cheio de segredos,

tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,

o povo, meu poema, te atravessa.



Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

Yves Bonnefoy

"Poeta é quem, numa língua em que há sem dúvida noções inumeráveis,


idéias com pressa de dizer tudo, cria relações,

não entre idéias, mas entre palavras, pela via de uma beleza

de escrita que faz intervir as sonoridades, os ritmos,

e toma a parência de imagens, irredutíveis à análise."



"A poesia é antes de tudo

um modo de lutar contra a linguagem.

A linguagem trinca a realidade,

que é aquilo que substitui a representação mental.

Pode-se fazer poesia por causa do sentido das palavras

e entrar numa outra ordem de conceitos.

A poesia não significa, ela mostra"



Yves Bonnefoy

Gilberto Mendonça Teles

Modernismo








No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado.

No fundo, nada: eu sou romântico de todo jeito.

Eu sou romântico de corpo e alma,

de dentro e fora,

de alto e baixo, de todo lado: do esquerdo e do direito.

Eu sou romântico de todo o jeito.





Sou um sujeito sem jeito que tem medo de avião,

um individualista confesso, que adora luares,

que gosta de piqueniques e noitadas festivas,

mas que vai se esconder no fundo dos restaurantes.





Um sujeito que nesta recta de chegada dos cinquenta

sente que seu coração bate tão velozmente

que já nem agüenta esperar mais as moças

da geração incerta dos dois mil.





Vejam, por exemplo, a minha carta de apaixonado,

a minha expressão de timidez, as minhas várias

tentativas frustradas de D.Juan.

Vejam meu pessimismo político,

meu idealismo poético,

minhas leituras de passatempo.





Vejam meus tiques e etiquetas,

meus sapatos engraxados,

meus ternos enleios,

meu gosto pelo passado

e pelos presentes,

minhas cismas,

e raptos.

Vejam também minha linguagem

cheia de mins, de meus e de comos.

Vejam, e me digam se eu não sou mesmo

um sujeito romântico que contraiu o mal do século





e ainda morre de amor pela idade média

das mulheres.



Gilberto Mendonça Teles

Gilberto Mendonça Teles

Gilberto Mendonça Teles


A poesia mostra ao homem outros sentidos da existência, integra-o na plenitude da sua cultura, dá ênfase ao visível e escancara as janelas do invisível, amplia portanto o seu universo e lhe restitui a ilusão de sua divindade, uma vez que lhe dá o poder da criação através da linguagem. Ela tem a força natural dos álibis - que apontam para um e, ao mesmo tempo, para outro lugar, quase sempre utópico; e tem, como a Sibila o poder encantatório de nos fazer jogar com o sobrenatural. É por isso que os tiranos de todos os tempos e lugares temem os poetas e a poesia. E não é à toa que para Hölderlin ela é ao mesmo tempo a mais inocente das ocupações e o mais perigoso de todos os bens.

James de Lima

ESCADAS




As escadas estão ali,

verticalmente.

Andando para sempre.



Pisei num abismo,

e entrei numa círculo vicioso.



Vim, vendo tudo se perdendo,

até que me encontro aqui,

num espelho, que, distorcendo-me,

torna-me estranho a mim mesmo.



Mas quem sabe

eu já não esteja

caminhando

para fora do círculo

e para dentro de mim mesmo.



Talvez eu já saiba um pouco.

Quem sabe...



James de Lima

Anderson Braga Horta

APOESE




Mudas, incriadas,

jazem no possível

todas as palavras.

Nesse limbo inscrevem-se

invisivelmente

todos os poemas

ditos, por dizer,

mais os indizíveis.

Nesse limbo se amam,

bicam-se as palavras,

numa intimidade

por nós mal sonhada.

Relações repousam

insolicitadas,

frases adormecem

de desinvocadas,

e afinal se cruzam,

crispam-se, eriçadas

na ânsia de uma língua

— boca, pena, gesto.

Nesse inesgotável

lago das palavras,

onde tudo encontra

seu signo prateado,

mergulhou o Homem

e pescou sofismas,

teses, xingamentos,

jogos, alguns poemas.

Infinito é o Sonho

que, irrealizado,

dorme em apoese

nesse obscuro lago.



Anderson Braga Horta

In Fragmentos da Pixão (1971)

Sophia de Mello Breyner Andresen

As Rosas




Quando à noite desfolho e trinco as rosas

É como se prendesse entre os meus dentes

Todo o luar das noites transparentes,

Todo o fulgor das tardes luminosas,

O vento bailador das primaveras,

A doçura amarga dos poentes,

E a exaltação de todas as esperas.



(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Michel Tournier

…Um rosto desperto, curioso, extrovertido, seria uma catástrofe para o corpo nu. Não deixaria de o esvaziar, de lhe tirar a substância.(…)O bom rosto do nu é um rosto fechado, compacto, concentrado sobre si mesmo.








Michel Tournier

Adélia Prado

ESPLENDORES






Toda a compreensão é poesia,

clarão inaugural que névoa densa

faz parecer velados diamantes.

Em pequenos bocados,

como quem dá comida a criancinhas,

a beleza retém seu vórtice.

São águas de compaixão

e eu sobrevivo.





Adélia Prado

— A duração do dia

ROLLO MAY

A CORAGEM DE CRIAR -ROLLO MAY


“A coragem é necessária para que o homem possa ser e

vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se.

Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza. A bolota

transforma-se em carvalho por crescimento automático; nenhum compromisso

consciente é necessário. O filhote transforma-se em gato pelo

instinto. Nessas criaturas, natureza e ser são idênticos. Mas um homem

ou uma mulher tornam-se humanos por vontade própria e por seu compromisso

com essa escolha”(...)

(...)A principal característica dessa coragem é originar-se no centro, no interior do nosso eu, pois do contrário nos sentiremos vazios. (...)



ROLLO MAY

PABLO NERUDA

LA PALABRA NERUDA


... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ...
Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.




PABLO NERUDA

Rainer Maria Rilke

Rainer Maria Rilke: "Archaïscher Torso Apollos" / "Torso arcaico de Apolo": trad. Manuel Bandeira




Torso arcaico de Apolo



Não sabemos como era a cabeça, que falta,

de pupilas amadurecidas. Porém

o torso arde ainda como um candelabro e tem,

só que meio apagada, a luz do olhar, que salta



e brilha. Se não fosse assim, a curva rara

do peito não deslumbraria, nem achar

caminho poderia um sorriso e baixar

da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.



Não fosse assim, seria essa estátua uma mera

pedra, um desfigurado mármore, e nem já

resplandecera mais como pele de fera.



Seus limites não transporia desmedida

como uma estrela; pois ali ponto não há

que não te mire. Força é mudares de vida.

Roseana Murray

a vida é isso?


Espanto por espanto



a vida é isso?

essa espera de auroras

boreais

estar a sós com seus

pensamentos

falcões amestrados

em direção do passado

ao futuro

ao fundo duro

dos abismos?



o tempo não se mexe

penhasco imutável

no oceano das horas

nós é que nos vamos

estranhas marionetes

sem rumo



então a vida é isso

segundo por segundo

estrela por estrela

espanto por espanto



Roseana Murray

CLARICE LISPECTOR

A Viagem Lispector


A Viagem - Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector)





“......... E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”

NIETZSCHE

“O pensamento...emerge em mim- de onde? Por meio de que? Não sei. Ele vem, independentemente de minha vontade costumeiramente envolto e ensombrecido por uma multidão de sentimentos, desejos, aversões, também de outros pensamentos... Nós o extraímos de tal multidão, limpamos, colocamo-lo sobre seus pés... quem faz isso tudo- não sei, e sou aqui, seguramente mais espectador do que causa desse processo... Que em todo pensar parece tomar parte uma multiplicidade de pessoas-: isso não é, de maneira alguma, fácil de observar, somos fundamentalmente mais fortes no inverso, ou seja, ao pensar, não pensar no pensar. A origem do pensamento permanece oculta; é grande a probabilidade de que ele é apenas sintoma de um estado muito mais abrangente;que justamente ele chega e nenhum outro,


que ele chega justamente com essa maior ou menor clareza, por vezes seguro

e imperioso, por vezes fraco e carente de apoio...exprime-se em sinais, em

tudo isso, alguma coisa de nosso estado global ”(F. Nietzsche - Fragmento póstumo; GA

XIV,40s.Junho-julho de 1885 ,n. 38[1]; KGW VII3,p. 323 s , apud Muller-

Lauter, op.cit., p. 150).

Carlos Drummond de Andrade

cálido e emocionante Drummond


"... Prosseguimos.

Reinauguramos.Abrimos olhos gulosos a um sol diferente

que nos acorda para os descobrimentos.

...Esta é a magia do tempo.

Esta é a colheita particular

que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,

no acreditar na vida e na doação de vivê-la

em perpétua procura em perpétua criação..."

(Carlos Drummond de Andrade)

Guimarães Rosa

Sei: agudos os ossos da alma


"in AVE PALAVRA"







"Eu estava ali, cheio de mente,

Nas margens do meu mar de morte,

morada de ninguém; apenas minha?

em meio de muito pranto.

Sei: agudos os ossos da alma

e toda beleza é distante.

Só o túmulo obedece.

todo ídolo é tentativa de deter o tempo.



(nem o ar é meu, nem

o que é meu. E o relato

que é meu, do chão

do mar.)



eu morro de terrível autenticidade!



Não! que

ou ainda não sou! Que

eu ainda não sou saudade...



Senhora, sinto-vos: o

choque angélico.

Saudade - as modulações do escuro;

as

falenas de além-fogo, e

uma nudez de espada:

a ardente neutralidade de um anjo."



Guimarães Rosa

Hélio Pellegrino

Alguma coisa que é insubornável...


Na juventude, já grande amigo do escritor Fernando Sabino, Hélio Pellegrino lhe escreveu a seguinte mensagem:



“O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo em sua liberrérima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece seu nome.”





ALGUMA COISA



Para Guilhermo César





Alguma coisa resta: um gesto

nos tendões da mão engelhada.

Uma efusão inacabada

na ferrugem da pele-resto.





Alguma coisa que é da raça

dos minerais, insubornável,

além do amargo e do caroável,

do que perdura – e do que passa.





Alguma coisa inscrita: um grito

no fulgor do dedo anular.

Um puro incêndio sem queimar,

- como um segredo afinal dito.



Porto Alegre, 8/11/86







Hélio Pellegrino

In: Minérios Domados

Raul Machado

Fico, em volúpia, a olhar, numa atitude abstrata..


SERENIDADE





Fico, em volúpia, a olhar, numa atitude abstrata,

Os quadros de oiro e luz de um pôr de sol tristonho,

Há na minh’alma uma tendência inata

Para a serenidade e para o sonho.



Maldigo o vendaval, que em desvairado giro

As florestas contorce, em crispações estranhas.

E à inquietude do mar, sempre aflito, prefiro

A sugestiva paz, absorta, das montanhas.



Amo a contemplação, que em êxtases contritos

O espírito feliz transfigura e enaltece

E o pensamento eleva aos astros infinitos,

Nas asas de uma rima e ao vôo de uma prece.



Rica de poesia, a placidez evoca,

Em brumas de saudade, o sonho já sepulto ...

E o silêncio, fecundo, não se troca

Pela esterilidade do tumulto.



Homem! No coração o ódio reprime!

As paixões, faze tudo para contê-las!

Que o céu, sem nuvens, ainda é mais sublime!

E a água quieta é que reflete estrelas ...





Raul Machado

HILDA HILST

a fibra delicada que constroe a solidão..


Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto

te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.

Tocaram-te, nas tarde, assim como tocaste,

adolescente, a superfície parada de umas águas?

Tens ainda nas mãos a pequena raiz,

A fibra delicada que a si se construía em solidão?



Hilda Hilst

Hermann Hesse

ritmo Hesse


A noite





Rescende a flor na várzea,

longínqua flor da infância

que só de raro em raro ao sonhador

abre o velado cálice

e deixa ver – cópia do sol – seu interior.

Por cima das cordilheiras azuis

cega a noite vagueia

puxando sobre o seio a veste escura:

sorrindo esparze a esmo

sua dádiva – o sonho.

Curtidos pelo dia, em baixo dormem

os homens: têm os olhos

cheios de sonhos,

alguns viram o rosto suspirando

para as flores da infância

cujo aroma os atrai de leve na penumbra,

e ao severo chamado paternal do dia

confortados se alheiam.

Para o exausto, é um alívio

refugiar-se nos braços da mãe

que os cabelos do sonhador alisa

com mãos despreocupadas.

Somos crianças, logo nos fatiga o sol

- ainda que seja para nós destino e futuro sagrado –

e tombamos a cada anoitecer

pequeninos de novo no regaço da mãe,

balbuciamos palavras da infância,

palpamos o caminho do regresso às origens.

Também o pesquisador solitário

que para o vôo ao sol se propusera

vacila, também ele, à meia-noite

voltado para o ponto de partida longe.

E o que dorme, quando um pesadelo o desperta,

confusa a alma, pressente no escuro

a hesitante verdade:

toda corrida, para o sol ou para a noite,

conduz à morte, leva a novo nascimento,

dores que a alma receia.

Mas seguem todos o mesmo caminho:

todos morrem e tornam a nascer,

porque a eterna mãe

devolve-os eternamente ao dia.





Hermann Hesse

CLARICE LISPECTOR

Quer saber o que eu penso? Você aguentaria conhecer minha verdade? Pois tome. Prove. Sinta. Eu tenho preguiça de quem não comete erros. Tenho profundo sono de quem prefere o morno. Eu gosto do risco. Dos que arriscam. Tenho admiração nata por quem segue o coração. Eu acredito nas pessoas livres. Liberdade de ser. Coragem boa de se mostrar. Dar a cara a tapa! Ser louca, estranha, chata! Eu sou assim. Tenho um milhão de defeitos. Sou volúvel. Sou viciada em gente. Adoro ficar sozinha. Mas eu vivo para sentir. Por isso, eu te peço. Me provoque. Me beije a boca. Me desafie. Me tire do sério. Me tire do tédio. Vire meu mundo do avesso! Mas, pelo amor de Deus, me faça sentir... Um beliscãozinho que for, me dê. Eu quero rir até a barriga doer. Chorar e ficar com cara de sapo. Este é o meu alimento: palavras para uma alma com fome. "




(Clarice Lispector).

João Cabral de Melo Neto

açula a atenção!isca-a com o risco


'Catar feijão'





Catar feijão se limita com escrever:

joga-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na folha de papel;

e depois, joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,

água congelada, por chumbo seu verbo;

pois para catar esse feijão, soprar nele,

e jogar fora o leve e o oco; palha e eco.





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Ora, nesse catar feijão entra um risco:

o de que entre os grãos pesados entre

um grão qualquer, pedra ou indigesto,

um grão imastigável, de quebrar dente.

Certo não, quando ao catar palavras:

a pedra dá à frase grão mais vivo:

obstrui a leitura fluviante, flutual,

açula a atenção, isca-a com o risco.



João Cabral de Melo Neto

In:"A educação pela pedra"

Marilena Chauí

vejamo-las em sua mudez...


...''Ver as palavras. Delas chegar perto. Contemplá-las: antes do poema são coisas visuais e, como todo visível, "tem mil faces secretas sob a face neutra". Antes que espalhem sentido e beleza, antes que falem, vejamo-las em sua mudez. Acerquemo-nos delas "em estado de dicionário". Quais escolheremos? Aquelas que nos fazem ver o vínculo secreto entre o olhar e o conhecimento...''





Janela da Alma, espelho do mundo -Marilena Chauí

PIER PAOLO PASOLINI

anatomia da lingua


(...) Para me fazer compreender, tenho que referir-me à afirmação (...) de que existe antes de tudo o mais uma linguagem da acção (que dizemos assim, por analogia, semiológica, nas expressões "linguagens da moda, linguagem das flores", etc., etc.): falei já de um poema de acção a propósito de Lenine... Pois bem, talvez impelido pela grande vaga de empirismo, por um lado, e, por outro lado, de moralismo que investe o mundo dos anos presentes, quero insistir neste ponto.

A primeira linguagem dos homens parece-me, portanto, o seu agir. A língua escrito-falada não é mais do que uma integração e um meio deste agir. mesmo o grau máximo de autonomia da língua relativamente a este agir humano - ou seja: o momento puramente expressivo da língua - a poesia - não é por sua vez senão uma nova forma de acção: no momento em que o leitor a escuta ou a lê, em resumo: a percepciona, liberta-a de novo da convenção linguística e recria-a como dinâmica dos sentimentos, dos afectos, das paixões, das ideias: redu-la a entidade audiovisual, quer dizer: reprodução da realidade, acção - e eis como o círculo se fecha. (...)





PIER PAOLO PASOLINI

(in "Emprisismo Herege";

Tradução de Miguel Serras Pereira)

Sophia de Mello Breyner Andresen




Sozinha caminhei num labirinto


Aproximei meu rosto do silêncio e da treva

Para buscar a luz de um dia limpo





Sophia de Mello Breyner Andresen, Poemas Escolhidos. São Paulo: Cia das Letras, 2004

ITALO CALVINO

sair da obtusa e ignorante inteireza


“- Que se pudesse partir ao meio toda coisa inteira - disse meu tio, de bruços no rochedo, acariciando aquelas metades convulsivas de polvo - que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você há de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços.” [p. 52]

CALVINO, Ítalo. O visconde partido ao meio - tradução Nilson Moulin- São Paulo: Companhia das Letras, 1996

FERREIRA GULLAR

O poema nasce do espanto


“O poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensível. Vou contar uma história: um dia, estava vendo televisão e o telefone tocou. Mal me ergui para atendê-lo, o fêmur de uma das minhas pernas bateu no osso da bacia. Algo do tipo já acontecera antes? Com certeza. Entretanto, naquela ocasião, o atrito dos ossos me espantou. Uma ocorrência explicável de súbito ganhou contornos inexplicáveis. Quer dizer que sou osso?, refleti, surpreso. Eu sou osso? Osso pergunta? A parte que em mim pergunta é igualmente osso? Na tentativa de elucidar os questionamentos despertados pelo espanto, eclode um poema. Entende agora por que demoro 10, 12 anos para lançar um novo livro de poesia? Porque preciso do espanto.”





FERREIRA GULLAR em entrevista concedida a Armando Antenore para a Revista Bravo em março/2009

CLARICE LISPECTOR

Eu vi dentro de um olho


Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara _o mal-estar já petrificado subia com esforço até sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crostra_ mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. (...) Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.





LISPECTOR, Clarice. Os desastres de Sofia. In: LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.21-22.

yves.lecoq, The Big Choir.

HILDA HILST

Procuro uma maneira sábia de me pensar.






Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros debaixo do braço e se via alguém mais louco que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou: eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é o teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão: Não tenho não senhor. Só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos.





HILST, Hilda. Qadós. In: HILST, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977.

RAIZES DO HOMEM

EXERCICIOS DE HOMEM